24/11/2025
Se a hipocrisia precisasse de um caminho-de-ferro, teria exactamente o perfil do Corredor do Lobito. Vendido como símbolo de progresso africano, é, na verdade, um espelho de tudo o que o continente continua a suportar: dívida chinesa, oportunismo ocidental, sangue congolês, desgoverno angolano — e uma linha férrea que liga mais rapidamente os interesses estrangeiros do que as populações que vivem ao longo dos carris. Promete prosperidade, mas entrega uma versão reciclada da lógica extractiva de sempre.
por RAFAEL MARQUES DE MORAIS
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Angola acolhe a 7.ª Cimeira União Africana–União Europeia com este projecto como vitrine. Nos últimos meses, Washington, Bruxelas e uma máquina mediática bem afinada passaram a apresentar o Corredor do Lobito como resposta estratégica do Ocidente à influência crescente da China em África — uma narrativa sedutora, repetida pelo presidente João Lourenço como prova do seu sucesso diplomático.
Mas a sedução desfaz-se ao primeiro toque de realidade.
Um projecto chinês rebaptizado como ocidental
O eixo do corredor é o Caminho-de-Ferro de Benguela, reconstruído pela China entre 2006 e 2014 ao abrigo de um acordo “petróleo por infra-estruturas”, no valor de 2 mil milhões de dólares. Estações, pontes e viadutos surgiram das mãos chinesas, não americanas nem europeias.
Em 2015, os presidentes de Angola, da República Democrática do Congo (RDC) e da Zâmbia reabriram a linha em Luau, restabelecendo uma rota logística encerrada durante décadas. Desde então, cobre e cobalto voltaram a circular — de forma irregular, é certo — graças à engenharia chinesa.
Os factos são teimosos: cada quilómetro dessa linha foi financiado por dívida que Angola ainda hoje paga à China. O renascimento ocidental é, portanto, uma operação de cosmética narrativa.
Quando os EUA e a Europa finalmente despertaram para o corredor, em 2023, já tudo estava construído. Prometeram 4 mil milhões de dólares para extensões, estudos e consultoria — não para carris, locomotivas ou pontes. E mesmo o consórcio Lobito Atlantic Railway (LAR), apresentado como instrumento ocidental, tem ADN chinês: 32,4% da Mota-Engil pertencem à China Communications Construction Company, empresa estatal de Pequim.
O Ocidente não está a construir o corredor. Está a gerir a imagem de uma obra que não lhe pertence. A China não precisa sequer de resposta; os carris e o betão que deixou falam por si.
Prosperidade para quem?
A retórica de prosperidade conjunta para Angola, Zâmbia e RDC ignora o essencial: a RDC continua mergulhada num dos conflitos mais longos e sangrentos do mundo, alimentado precisamente pelos minerais que esta ferrovia transporta.
Nem o Ocidente nem a China demonstraram vontade política de interromper a guerra. Precisam dos minerais, não da paz.
E a parceria União Africana (UA)–União Europeia (UE)? Como pode aspirar à relevância quando falha em estabilizar a região que abastece as suas próprias cadeias industriais?
A pergunta impõe-se: que país africano avançou realmente em desenvolvimento humano graças ao investimento ocidental nas últimas duas décadas?
A resposta é desconfortável: nenhum.
As grandes petrolíferas ocidentais — Chevron, Exxon, TotalEnergies, BP, ENI — extraíram rios de dinheiro de Angola. O país permanece pobre, desigual e institucionalmente cada vez mais frágil. O mesmo se observa na Zâmbia e na RDC.
A China, por seu lado, apresenta-se como parceira do “win-win”, mas mantém uma alavancagem estrutural sobre Angola: nenhum país africano deve tanto a Pequim quanto Angola, com mais de 46 mil milhões de dólares acumulados em empréstimos desde 2000.
O Ocidente extrai ou aconselha. A China empresta e assegura influência. Nenhum modelo transformou verdadeiramente a sociedade africana.
O colapso interno: infra-estruturas sem Estado
A maior ameaça ao potencial do Corredor do Lobito reside na própria Angola. O presidente Lourenço prometeu reformas estruturais, mas capturou o Estado e preservou o modelo económico extractivo. Os serviços sociais definham, mas o problema vai além do orçamento: Angola não forma capital humano, porque o sistema educativo reprime o pensamento crítico.
Uma população educada para a obediência não questiona, não inova e não transforma a economia. Torna-se vulnerável a narrativas externas — chinesas, ocidentais ou domésticas.
A prova está nos Caminhos-de-Ferro de Luanda, paralisados, apesar de terem sido reconstruídos a alto custo. Se o país não consegue operar os seus próprios corredores internos, como espera que o Corredor do Lobito seja motor de desenvolvimento real?
E permanece um absurdo logístico: Angola tem três linhas ferroviárias sem nenhuma interligação:
• O Caminho-de-Ferro de Benguela serve o eixo centro-leste;
• O de Luanda, o noroeste;
• O de Moçâmedes, o sudoeste.
Três ilhas ferroviárias num território continental. Sem ligação norte-sul ou leste-norte, não existe mobilidade nacional, muito menos integração económica. Nenhuma retórica de Washington ou Bruxelas substitui o que o Estado angolano falha em construir. Ser elogiado no Ocidente não constrói um Estado funcional.
Para além do teatro geopolítico
O corredor poderia ser um instrumento real de transformação: modernizar operações, diversificar exportações, estimular cadeias de valor, apoiar empresários locais. Mas isso requer transparência, investimento nacional, estratégias sensíveis ao conflito na RDC e políticas que removam as barreiras impostas por elites — estrangeiras e internas.
Sem isso, continua a ser apenas mais um corredor para o exterior, não para os angolanos.
Conclusão: o espelho que Angola evita
O Corredor do Lobito não é uma disputa entre os EUA e a China. É um espelho que revela uma verdade amarga: o Ocidente reivindica o que não construiu; a China mantém alavancagem através da dívida e das infra-estruturas que controla; e Angola, presa à sua própria engrenagem de captura do Estado, observa o desenvolvimento escapar-se-lhe das mãos.
A questão central não é quem colocou os carris ou opera os comboios. É quem beneficia — e a que custo para as comunidades do Lobito a Kolwezi e ao coração devastado da RDC.
Sem integridade nas respostas, o corredor permanecerá o que sempre foi: mais uma rota extractiva mascarada de oportunidade. Mais uma linha no mapa onde as potências lucram e as populações ficam a ver passar os comboios.
Se a hipocrisia precisasse de um caminho-de-ferro, teria exactamente o perfil do Corredor do Lobito. Vendido como símbolo de progresso africano, é, na verdad