03/11/2025
O Congresso Nacional de Reconciliação promovido pela Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST) propõe-se reflectir sobre o bem comum e convocar o espírito conciliatório em Angola, país marcado por décadas de conflito armado, exclusão política e desigualdade estrutural. A CEAST até pode tornar-se uma mediadora relevante, mas para isso precisa de abraçar uma lógica de facilitação plural. A reconciliação, se for entendida como parte de uma transição, pode ser útil. Mas se for usada como cortina de fumo para evitar a mudança, torna-se contraproducente.
por RUI VERDE
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É sempre positivo, e até necessário, pensar no bem comum. Num país como Angola, marcado por décadas de conflito armado, exclusão política e desigualdade estrutural, qualquer iniciativa que convoque o espírito de reconciliação merece atenção.
O Congresso Nacional de Reconciliação promovido pela Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), que terá lugar nos próximos dias 6 a 9 de Novembro, inscreve-se nesse esforço. No entanto, a sua concepção e execução revelam algumas limitações, as quais podem impedir que se cumpram os objectivos generosos da iniciativa, uma vez que se corre o risco de repetir erros do passado e obscurecer o verdadeiro desafio que Angola enfrenta: não apenas reconciliar, mas promover uma transição para um novo sistema político.
O Congresso, embora conte com algumas figuras de reconhecido valor moral e intelectual, parece estruturalmente limitado. A sua composição assemelha-se mais a um círculo fechado dos intervenientes habituais do que a uma representação plural e territorialmente abrangente da sociedade angolana. Falta-lhe densidade social, diversidade política, representatividade económica e legitimidade institucional. A ausência de vozes das periferias, das juventudes urbanas e rurais, dos movimentos cívicos emergentes e das forças políticas que não orbitam o poder central, mas também deste, torna o exercício menos inclusivo e mais simbólico.
A multiplicidade de temas abordados, sem uma linha metodológica clara, transforma o congresso numa espécie de salada russa de intenções, onde o foco se perde e a eficácia se dilui.
O problema angolano não é, em essência, de reconciliação. O que Angola vive é uma luta prolongada pelo poder, pela sua manutenção e pela sua redistribuição. Há um segmento significativo da sociedade que deseja uma mudança política real – não apenas uma alternância simbólica, mas a saída efectiva do MPLA do poder. Este desejo não se traduz necessariamente em antagonismo, mas sim na aspiração legítima a um novo modelo de governação, mais transparente, mais descentralizado e mais participativo.
Do outro lado, o partido dominante, além de resistir à mudança por razões ideológicas e estratégicas, vive sob o peso do medo. Medo de perder o controlo, medo de ser perseguido, medo de ver expostos os benefícios acumulados – legais ou ilegais – ao longo de décadas de governação. Este medo é estrutural e paralisa qualquer tentativa de abertura.
A transição, portanto, não é apenas uma questão técnica ou constitucional. É, antes de tudo, um processo psicológico e institucional que exige garantias, mecanismos de confiança e uma nova arquitectura de poder.
O verdadeiro esforço nacional deveria centrar-se na construção de uma plataforma de transição. Uma plataforma que não se limite à reconciliação simbólica, mas que proponha mecanismos concretos de partilha e transferência de poder. Isso implica, desde logo, a elaboração de uma nova Constituição, consensual e participativa, que redefina os equilíbrios institucionais e crie estratos de poder descentralizado. O modelo actual, excessivamente presidencialista e centralizador, não permite a emergência de novos actores políticos nem a redistribuição efectiva de competências e recursos.
A transição exige também a institucionalização de garantias mútuas. O medo de entrar no poder e ser bloqueado, ou de sair e ser perseguido, precisa de ser resolvido por via de pactos políticos claros, supervisionados por instâncias independentes e, se necessário, por observadores internacionais. A partilha de poder não deve ser vista como uma concessão, mas como uma estratégia de sobrevivência nacional. Num país com profundas clivagens sociais e económicas, a exclusão política é uma bomba-relógio. A inclusão, mesmo que gradual e negociada, é o único caminho sustentável.
Neste contexto, o papel da sociedade civil, das igrejas, das universidades, dos sindicatos e dos movimentos juvenis é crucial. Não basta convocar congressos – é preciso construir processos. Processos que envolvam escuta activa, representação legítima e compromissos verificáveis.
A CEAST, com a sua autoridade moral, pode tornar-se uma mediadora relevante, mas para isso precisa de abraçar uma lógica de facilitação plural. A reconciliação, se for entendida como parte de uma transição, pode ser útil. Mas se for usada como cortina de fumo para evitar a mudança, torna-se contraproducente.
Angola precisa de um novo pacto político. Um pacto que reconheça os erros do passado, mas que não se prenda a eles. Um pacto que permita a emergência de novas lideranças, sem demonizar as antigas. Um pacto que crie espaço para a diversidade ideológica, sem cair na fragmentação. Um pacto que transforme o medo em confiança e a exclusão em participação. Esse pacto não se constrói em ambientes fechados, mas em processos abertos, transparentes e institucionalmente vinculativos.
A transição não é um destino – é um caminho. E esse caminho exige coragem, inteligência estratégica e compromisso ético.
O futuro de Angola não se decide em fóruns simbólicos, mas na capacidade de construir instituições sólidas, regras claras e espaços de poder partilhado. Reconciliação, sim – mas como parte de uma transição real, verificável e inclusiva.
É sempre positivo, e até necessário, pensar no bem comum. Num país como Angola, marcado por décadas de conflito armado, exclusão política e desigualdade