19/06/2025
𝑪𝒂𝒑í𝒕𝒖𝒍𝒐 9: 𝑨𝒔 𝑽𝒐𝒛𝒆𝒔 𝒅𝒂 𝑭𝒍𝒐𝒓𝒆𝒔𝒕𝒂
A viagem até o Bié foi longa e silenciosa. A cada quilômetro deixado para trás, Mona sentia o peso do tambor em sua alma — mesmo guardado longe, em segurança. Era como se o instrumento vibrasse dentro dele, acordando memórias que não eram suas. Fragmentos de lutas. Rostos desconhecidos. Gritos. Canções.
Chegaram ao planalto central após dias cruzando zonas de vigilância, desviando das forças da P.E.S.O. e se alimentando de raízes, frutas silvestres e pequenas oferendas deixadas por comunidades ocultas que ainda resistiam.
Nayla guiava o grupo agora com mais cautela. Ela sentia algo diferente na energia da terra. Como se o próprio território, antes guardião de segredos milenares, estivesse envenenado.
— A floresta aqui não canta mais — disse ela, numa manhã. — Ela chora.
Zola, sempre firme, mantinha o cajado na mão e os olhos atentos.
— Escutei vozes durante a noite. Sussurros. Como se os troncos falassem.
— Falam — respondeu Mona. — Mas estão a pedir ajuda.
O Tambor Central, segundo Nayla, estava escondido em Kambila, um santuário natural escondido entre montanhas e rios do Bié profundo. Mas quando chegaram às suas margens, encontraram ruínas.
Antigas pedras sagradas haviam sido partidas, símbolos talhados a fogo nas árvores. No centro, onde outrora dançavam os ancestrais, havia uma torre metálica emitindo sinais — uma Antena de Interferência Espiritual, uma invenção do regime.
E guardando a torre, ele: Nkulo Banze, um antigo sacerdote convertido. Trajava roupas rituais corrompidas com fios de cobre, e no peito carregava um pingente feito de espelho quebrado. Era chamado de “O Quebrado”.
— Estão atrasados — disse ele, ao ver o trio. — Já senti o cheiro do tambor em ti, menino.
Mona olhou fixamente.
— Tu eras um guardião.
— Fui. Até perceber que os deuses também abandonam os seus — respondeu Nkulo. — Eu pedi socorro. Ninguém veio. Nem tuas Kiandas, nem teus líderes mortos. O regime me ouviu. E agora sou eu quem guarda este território.
— Corrompes a floresta com teus fios — acusou Nayla.
— Eu dou-lhe propósito! Esta mata era só lamento. Agora é máquina. Ordem.
Nkulo ergueu o braço e uma onda de energia espiritual, corrompida por tecnologia, lançou-se contra o grupo. Zola bloqueou o impacto com o cajado, mas foi atirada para trás. Nayla conjurou uma barreira de raízes, que explodiu ao contato com a descarga energética.
Mona ficou sozinho.
Nkulo avançou, os olhos faiscando com luz artificial.
— Não és ninguém, rapaz. Só um eco mal resolvido do passado. O futuro pertence aos que fazem pactos.
Mas naquele instante, Mona fechou os olhos.
E os sons voltaram.
Não era o tambor do Sul. Era outro. Mais grave. Mais profundo. O Tambor Central pulsava sob a terra, mesmo aprisionado, mesmo silenciado. Ele chamava Mona.
— Eu não sou passado. Eu sou ponte.
Ele ajoelhou-se, colocou as mãos no chão, e chamou o nome do Bié.
O chão tremeu. A antena zuniu em desespero. A vegetação morta começou a brotar de novo. Flores abriram-se diante do impacto. E do fundo da mata, uma árvore imensa, escondida por gerações, abriu-se como um útero vivo.
Dentro, estava o Tambor da Memória Central — maior, pesado, com inscrições em Umbundu, e adornado com fios de barro vermelho.
Nkulo gritou de raiva.
— Eu sou o novo sacerdote!
Mas Mona já estava de pé, com o tambor em mãos. Ao batê-lo, o som não foi como os outros.
Foi um grito de reconexão.
E naquele momento, os animais voltaram. Macacos, pássaros, cobras e felinos cercaram o local. Os espíritos das árvores dançaram no ar, e Nkulo caiu de joelhos, a máscara rachando, os espelhos estilhaçando.
Zola e Nayla aproximaram-se, feridas mas de pé. Nayla olhou para Nkulo, e disse:
— Ainda podes voltar. A floresta perdoa.
Mas ele desviou o olhar e desapareceu entre os cipós.
O tambor foi selado com proteção ritual. E naquela noite, pela primeira vez, a floresta do Bié cantou de novo. O céu se encheu de estrelas, e Mona sentou-se sozinho com o tambor, olhando para o norte.
Nayla aproximou-se e colocou uma mão em seu ombro.
— O próximo nos chama. As terras altas do Huambo.
— E o tempo está a apertar — disse Zola. — O regime está a reunir forças.
— Que venha — disse Mona, erguendo os olhos para o céu. — Agora temos a floresta ao nosso lado.