18/09/2025
COM QUANTAS RIMAS SE FAZ UM CLÁSSICO?
Porque clássico não é sinónimo de antigo — é sinónimo de eterno.
Nesta rubrica mergulhamos nas palavras, nos beats e nas imagens que fazem do rap muito mais do que música. Investigamos as obras que nascem já com o peso da posteridade, que respiram identidade e falam com o agora sem perder de vista o antes e o depois. Obras que, mesmo recém-chegadas, carregam alma de clássico.
“Na Guerra ou no Amor”, o primeiro single do segundo EP de Hidrogénio & DJ Mamen, lançado em 2023. A canção não só confirma o estatuto da dupla como referência maior do hip-hop angolano contemporâneo, como também eleva a fasquia do que se entende por consistência e visão artística dentro do género.
Hidrogénio segue a linha que vem traçando há anos — a de um dos letristas mais sofisticados da música angolana. No campo específico do rap, é difícil não o colocar entre os dez melhores. Se formos honestos, talvez até entre os cinco. A sua escrita é uma alquimia entre o existencial, o espiritual e o político. Cada verso é meticulosamente construído, e cada linha parece ter atravessado camadas de reflexão, vivência e dor. É filosofia de rua, dita com o peso de quem viu o mundo de perto — e sobreviveu para rimá-lo. A maturidade aqui não é pose: é cicatriz, é legado, é consciência.
DJ Mamen, por sua vez, assume a arte da subtileza com mestria. É mestre do espaço e do tempo: sabe quando calar o beat, sabe onde cortar o silêncio. Os seus scratches não são apenas adorno técnico, mas acenos respeitosos à linhagem do rap lusófono — com referências discretas, mas impactantes, a nomes como Fusível, Boss AC e Kalibrados (Kadaff). Mamen transforma cada faixa num espaço de continuidade, onde passado e presente se encontram com elegância e reverência.
O instrumental, assinado por Blaq Caff, é um boombap limpo e elegante, com o mesmo perfume dos clássicos de Apollo Brown, mas com um ADN marcadamente angolano. Uma produção que respeita a tradição do género, mas não se limita a ela. Blaq Caff entrega um instrumental que serve a caneta de Hidrogénio com generosidade e precisão, oferecendo também a base perfeita para que cada corte e risco de DJ Mamen respire, pese e reverbere. Uma batida sem ruído desnecessário, sem excessos, só o necessário para que o essencial se imponha.
O videoclipe, realizado por Relatório Autónomo (Ubuntu Media), amplia ainda mais o alcance simbólico da faixa. O ponto de partida é o quartel do Movimento Ubuntu, mas a narrativa visual desloca-se por Luanda (talvez) e pelo tempo, costurando referências históricas e culturais que ancoram a canção num lugar de memória e resistência. As imagens evocam figuras como Rainha Ginga, Thomas Sankara, Amílcar Cabral e Muhammad Ali, inserindo a luta quotidiana angolana numa constelação pan-africanista maior. A presença de Azagaia — ainda que em graffiti — é outro gesto de homenagem que diz tudo, sem precisar explicar nada. É um clipe que não ilustra a música, mas a expande, traduzindo em imagem a força simbólica que a letra já carrega.
“Na Guerra ou no Amor” é mais do que um single. É um acto de fé no poder da palavra. Um compromisso com a herança do rap como ferramenta de lucidez, resistência e afecto. Um lembrete de que fazer música não é apenas entreter — é dizer, é convocar, é marcar lugar na história.
E então, COM QUANTAS RIMAS SE FAZ UM CLÁSSICO?
Link do vídeo nos comentários.
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