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Fumódromo da Alma A arte fora do algoritmo.

NEM TODO O RAP é feito para dançar ou erguer punhos no ar. Há um canto sombrio do hip-hop onde os pesadelos rimam em BPM...
11/07/2025

NEM TODO O RAP é feito para dançar ou erguer punhos no ar. Há um canto sombrio do hip-hop onde os pesadelos rimam em BPM, onde o microfone se torna uma faca e os beats soam como corações acelerados na penumbra. Esse lugar chama-se — um subgénero que nunca quis agradar, apenas assustar.

O som começou a ganhar forma nos anos 80, quando o mundo ainda tentava perceber o rap. Em Houston, os lendários Geto Boys traziam letras sobre doenças mentais, trauma e violência demasiado real para passar na rádio. Willie D e Bushwick Bill não falavam apenas dos horrores da rua — eles viveram-nos.

Mas o pântano do Sul não era o único berço das sombras. Em Memphis, o Three 6 Mafia — ainda nos tempos de DJ Paul e Lord Infamous — criava cassetes que pareciam grimórios: feitiçaria, rituais, vozes distorcidas e drum machines que soavam como batidas de um coração prestes a parar.

No Norte, Nova York assistia ao nascimento dos Gravediggaz, grupo formado por RZA (sim, o do Wu-Tang Clan), com Prince Paul e Poetic. Levaram o horrorcore a um nível mais teatral, quase filosófico — como se Edgar Allan Poe tivesse aprendido a rimar. Por outro lado, The Flatlinerz surgiram com sangue, cruzes invertidas e aquele sabor proibido que o mainstream odeia mas o underground adora.

Foi também ali, entre as sombras da Big Apple, que Kool Keith começou a mexer com os limites da mente e da carne. Ele pode até não ser rotulado directamente como horrorcore, mas sua persona Dr. Octagon cuspia versos sobre alienígenas, cirurgia psíquica e insanidade com um sarcasmo clínico. Kool Keith era (e é) o tipo de MC que parece ter saído de um hospício futurista — um precursor do bizarro, do grotesco, do rap sci-fi que beija o horror sem pedir permissão.

No Oeste, Brotha Lynch Hung, de Sacramento, fazia rap como se fosse um slasher em primeira pessoa. Letras com necrofilia, desmembramentos e uma mente doentia, mas com flow técnico e produção afiada. Se fosse branco e guitarrista, estaria numa banda de death metal.

Não podemos esquecer Esham, de Detroit, pioneiro do que ele próprio chamou de “acid rap” — psicadélico, sujo e demoníaco. Influenciou directamente os Insane Clown Posse, que criaram o seu próprio universo: o Dark Carnival, palhaços assassinos, fãs devotos (os Juggalos) e uma mitologia que ainda hoje se mantém viva, longe dos holofotes.

E depois, claro, veio NECRO, de Nova York, um dos poucos que conseguiu fundir horrorcore com metal extremo sem soar forçado. Criador do termo "death rap", é tão underground quanto influente, misturando anatomia forense com punchlines brutais.

Mais tarde, o horrorcore foi-se reinventando. Surgiram nomes como TWISTED INSANE, a criar rimas a uma velocidade insana, com temas de demência e desespero. Ou os #$uicideboy$, de Nova Orleans, que recuperaram a estética do horrorcore sulista, misturada com depressão, vício e autoaniquilação.

Hoje, o estilo não está nas tabelas de vendas — e talvez nem devesse estar. Vive onde sempre pertenceu: nas margens, nos porões, nos auscultadores de quem se sente demasiado estranho para o rap convencional, mas continua a precisar de exorcizar os próprios demónios.

Porque por vezes, o verdadeiro horror não está nos filmes… mas na batida.




A arte fora do algoritmo.
Sons com cheiro a asfalto.

HÁ UM DITADO que diz: “Quem não conta, é contado.”E uma das habilidades mais difíceis dentro do rap é mesmo essa: saber ...
04/07/2025

HÁ UM DITADO que diz: “Quem não conta, é contado.”
E uma das habilidades mais difíceis dentro do rap é mesmo essa: saber contar uma história.

Parece fácil, né? Afinal, todo mundo conta histórias no dia-a-dia. Mas já todos ouvimos algum amigo que começa a contar uma cena… e tu perdes o fio no meio. Às vezes esquece detalhes importantes, às vezes atropela tudo, ou simplesmente não tem carisma — e a conversa muda de rumo só pra não morrer. No rap, não é diferente.

Nem todo MC sabe narrar uma boa história em cima do beat. Mandar uma punchline? Muitos mandam. Mas criar um universo em três minutos, com começo, meio e fim — isso já é uma arte à parte. É trabalhar o verbo com precisão, sensibilidade, e um ouvido afiado para o detalhe.

E não falamos só duma rima com história. Falamos de uma viagem com alma, cenário, personagem, conflito e consequência. São curtas-metragens rimadas, que tu vês com os ouvidos, imagens a te passarem pela mente a cada palavra escutada.

O storytelling não nasceu com o hip-hop, nem é exclusivo do rap. Na verdade, antes dos beats estourarem nos becos do Bronx, antes do vinil rodar a cuspir rimas sobre samples roubados ao silêncio, já havia quem contasse histórias.

Lá pelo século XIII, os Griots do Império Mandinga — do Mali, Senegal, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Serra Leoa, Libéria e Gâmbia — usavam a palavra como tambor de memória. Eram poetas, músicos, cronistas da alma do povo. Com a kora nas mãos, faziam da música uma ponte entre gerações. Cada corda puxava o passado até ao presente. Falavam de guerras, iniciações, luto, amor e recomeços.
Contavam para lembrar. Contavam para não morrer.

Essa chama cruzou o Atlântico, dançou no toasting jamaicano e aterrou em Nova York pela boca de Kool Herc, num bairro onde até o asfalto queria falar. O hip-hop ali não nasceu — foi reencarnado. Porque o impulso de contar (e cantar) o que se vive é mais antigo que qualquer microfone. E ganhou força nas esquinas, nos becos e nas festas de rua da Big Apple, onde os sistemas de som vintage marcaram a primeira grande evolução do rap.

Tal como os griots, os MCs começaram a documentar o dia-a-dia nas rimas: desde lutas de rua a festas entre amigos, passando até por experiências espirituais ou paranormais. Alguns criavam personagens e cenários fictícios, libertando-se da própria pele para mergulhar noutras realidades — viagens mentais que nos arrastam pelos corredores escuros da psique humana: dor, doença, raiva, perversão. (Mas isso f**a pra outro post.)

Por agora, viajemos até 1988, quando Slick Rick lançou a primeira verdadeira aula de storytelling em forma de álbum: “The Great Adventures of Slick Rick.”

Com doze faixas, Rick puxou da cadência quase cantada e moldou a voz para encarnar alter egos como MC Ricky D, The Ruler, e também várias personagens femininas, na maioria das vezes, eram alvo de suas rimas dolorosamente explícitas.

Apesar do humor e da sagacidade, o que mais prendia o ouvinte ainda era a clareza com que ele narrava — permitindo percebermos a dureza da pobreza, da violência da polícia e da luta por sobrevivência nos subúrbios americanos.

Slick Rick transformou o microfone numa lente de cinema. Dava vozes a personagens, criava universos em três minutos e meio. Como na famosíssima “Children’s Story”, onde acompanhamos o declínio trágico de um adolescente como se fosse um episódio de alguma série: cada verso uma escolha errada, cada escolha um passo rumo ao fim. A música começa com crianças a pedirem ao tio Ricky:

"Conta uma história!" E ele começa como qualquer conto de fadas:

"Era uma vez..."

Mas o que vem a seguir não é nenhum conto da Disney. É a derrocada de um adolescente que se mete no crime, tenta roubar um polícia à paisana, foge, sequestra, hesita, e mesmo com o coração no lugar e mente sã, acaba por cair. Slick despe-se de moralismos, mas no fim, avisa:

"This ain't funny, so don't ya dare laugh / Just another case about the wrong path."

Bem, não vamos nos alongar, hoje em dia, todo bom contador de histórias — seja Eminem, Nas, Ikonoklasta, Boss AC, Phay Grand O Poeta, Sam the Kid — carrega algo de Slick Rick. E todos carregam os griots dentro. Porque no fim das contas, rap é isso: Tradição oral amplif**ada. História passada de boca em boca, de disco em disco, até virar nossa também.

Enquanto houver MC com algo a dizer, o griot não morre. Só muda de nome.




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INSANIDADES SOCIAIS HOJE INSPIRAM NÁUSEAS GRAMATICAIS... não tem jeito melhor de começar a não ser pelo nome.Lançado em ...
27/06/2025

INSANIDADES SOCIAIS HOJE INSPIRAM NÁUSEAS GRAMATICAIS... não tem jeito melhor de começar a não ser pelo nome.

Lançado em 2002, "A Ciphra da Lua Negra" é mais que um álbum: é uma invocação poética, um relicário de sombras líricas que marca o limiar entre o rap de intervenção tradicional angolano e uma nova forma de introspecção sonora — o horrorcore.

Assinado pela enigmática dupla Insanidades Sociais Hoje Inspiram Náuseas Gramaticais, ou se preferirem, I.S.H.I.N.G., formada pela tradicional parceria entre um DJ e um MC, no caso, DJ Samurai 侍 e RAF TAG (à época MorV Kraven). O disco representa um momento de ruptura e ao mesmo tempo de fundação, onde a linguagem do medo, da angústia e da lucidez distorcida encontram forma em beats densos e versos quase ritualísticos.

RAF TAG se apresenta aqui como um verdadeiro xamã da palavra, cuja escrita escapa aos clichês do rap da época. Sua lírica não é apenas subversiva — ela é litúrgica, impregnada de imagens simbólicas, tormentos existenciais e um vocabulário meticulosamente escolhido para evocar atmosferas densas.

Em faixas como “Poltergeist – A Mensagem Distorcida” ou “Terror Punchlinez”, sua construção métrica revela uma erudição subterrânea: rimas internas, aliterações, e um controle impecável da prosódia sustentam versos que parecem arrancados de um diário hermético, escrito à luz de uma vela em meio a vozes espectrais.

Para a era atual, onde os menos estudados viraram críticos, soa a descompassado, mas RAF TAG destaca-se pelo domínio absoluto da sílaba tónica, pelo uso sofisticado de enjambement (a quebra de sintaxe entre versos) e por uma cadência que simula respirações truncadas — um reflexo estético da própria ansiedade urbana e mental que o álbum encarna. A dicção firme mostra que o suposto descompasso é na verdade sua técnica, quase teatral, somada a uma escolha semântica rica e sombria, reforça sua posição como um dos letristas mais idiossincráticos do rap angolano.

Complementando o caos verbal de RAF TAG, DJ Samurai atua como um cenógrafo sonoro, erguendo ambientes que oscilam entre o claustrofóbico e o onírico. Seus instrumentais não se limitam a acompanhar os versos, eles são extensões emocionais da palavra, construindo texturas carregadas de ecos, reverberações e samples minimalistas que criam um clima cinematográfico quase Lynchiano.

Na produção de faixas como “Ódio na Lua Negra” ou “Angústias e Guerras”, Samurai demonstra um ouvido clínico para a dissonância emocional, incorporando sons que parecem sussurros de outros planos. Sua estética sonora recusa a polidez radiofónica: em vez disso, abraça o ruído e o descompasso, como se cada beat fosse uma porta mal fechada entre o mundo visível e o inconsciente coletivo.

Mesmo na faixa “O Meu Habitat”, produzida pelo próprio RAF TAG, nota-se que o ambiente sonoro mantém coerência com a arquitetura de Samurai — o que revela não apenas cumplicidade artística, mas uma visão estética compartilhada, profundamente coesa.

RAF TAG e DJ Samurai assinam um ato de coragem estética, um gesto de arte que ainda hoje reverbera como um trovão abafado no subterrâneo da música urbana angolana, inspirando a nova geração com o mesmo impacto que inspiraram e moldaram artistas como Reverendo Cerebral, AKAM (DEP), Carbono (DEP), RK100AP aka Laton, e talvez, e só talvez mesmo, o Rainho aka Ready Neutro.

“A Ciphra da Lua Negra” não é uma obra para consumo ligeiro. É um trabalho que exige escuta concentrada, quase meditativa. Cada faixa é como um capítulo de um grimório obscuro, onde o horror psicológico não é apenas tema, mas método. Em tempos em que o rap angolano gravitava entre crítica social e vaidade lírica, ISHING ousou falar da introspecção do caos, da guerra travada dentro da mente.

Hoje somos o orgulho de quem olha para o passado e sabe que enfrentou os porres da vida sob a sinfonia da “Ciphra Da Lua Negra”.




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ANTES DA ODISSEIA, nascia o amor.Há álbuns que definem um artista. E há álbuns que definem uma época."99% de Amor" fez a...
24/06/2025

ANTES DA ODISSEIA, nascia o amor.

Há álbuns que definem um artista. E há álbuns que definem uma época.

"99% de Amor" fez as duas coisas — e ainda deixou os angolanos com uma dúvida até hoje: quem, em sã consciência, achava que rap e romantismo não combinavam?

Lançado em 1996, foi o pontapé frontal dos SSP (South Side Posse) para o estrelato. No meio de uma guerra civil, enquanto o resto do mundo ainda tentava entender se o rap era só pancadaria ou também podia ser poesia, esses quatro pretos bem no centro de Luanda apareceram com uma proposta ousada: beats suaves e dançantes, vozes melódicas, e letras que pareciam cartas de amor a rimar... infelizmente para a dor de muitos pseudo-conservadores, funcionou.

Os SSP sabiam perfeitamente onde se estavam a meter, talvez por isso, logo na primeira música, encontras versos como:

"Há muita malta jovem que pensa que isso é uma moda / Só quer ouvir batida e o resto que se f**a." — Jeff Brown

Sim! Aparentemente os SSP foram os primeiros artistas angolanos a editarem um "que se f**a" e ter sua música a passar na rádio sem ser censurada. Era 1996 e o coração valente, a rebeldia e a revolução imperava acentuada no ideal dos jovens angolanos da época.

“Há gente que ignora a força da mensagem / Por que criticamos muitos erros que eles fazem.” — Big Nelo

“A juventude de hoje é convencida pelo vício / E para a sociedade são um grande desperdício.” — Paul G

“Porque o rap que fazemos não é só para protesto / Pow! Pow! Pow! E outras dicas que detesto.” — Kudy

Claramente o álbum não é sobre a rebeldia jovem. Os SSP não eram uns Atitude Violenta, Filhos da Ala Este, África Preta, Consciência Activa ou qualquer outro grupo hardcore das entranhas dos becos menos visitados da cidade de Luanda. Os SSP vieram para conquistar o mainstream, logo, deparavas-te com a celebração da beleza da mulher local, rimas de verão e canções de amor — o que se esperar de 99% de amor? F**k tha police!? — com uma construção lírica que faz o ouvinte se imaginar no cenário, sentindo o orgulho e a paixão com versos simples e ef**azes, como por exemplo em "Olhos Café", uma das mais doces declarações já feitas em português ao microfone, principalmente se tratando da mulher negra.

Se a rima não era a mais complexa, era porque não precisava ser. A proposta era falar para o coração, não para a calculadora mental dos Ultramagnetic MCs. Nessa época não existia Aesop Rock, GZA dava os primeiros passos como The Genius, e as maiores referências internacionais do estilo eram os simplórios Tupac e Notorious, e eles nem duraram (mas eternamente lembrados). Era o rap de mensagem directa, como quem pega no telefone fixo e liga só para dizer: “estou com saudades tuas”. E era nisso que os SSP eram bons.

Muito distantes do tradicional boom bap, diferente dos seus contemporâneos que ainda lutavam com metrónomo e o signif**ado de AABB e ABAB na rima, os SSP já traziam um pouco daquela identidade angolana por cima dos beats, nossas gírias, nosso dialeto num fluxo invejável, já importavam sonoridades de estilos ocidentais, o ragga, a soul, a pop, e como diria Ikonoklasta, e um pouco de R&B. Os samples estavam lá visíveis, com linhas de baixo simples, sem efeitos exagerados. Respirem...

Havia uma doçura digital ali, algo que lembra hoje o som das teclas de um teclado Casio e dos primeiros loops gravados em fita. Mas era isso que dava charme. “99% de Amor” soa cru e polido, mas industrial ao mesmo tempo, se forem ouvir “História”, provavelmente a melhor música desse álbum, reviverão um pouco da criatividade do SSP, e foi a única vez que algo assim aconteceu na música angolana.

"99% de Amor" é um manifesto musical sem a necessidade de cruzar foices e martelos, e provou que o rap podia emocionar sem precisar levantar a voz. Nem todos deveriam ser Das EFX, nem todos teriam de seguir Lords of the Underground, alguns teriam de beber de Bee Gees, Vanilla Ice ou MC Hammer. Querendo ou não, SSP foi trilha sonora de relacionamentos, de danças lentas, de cartas nunca entregues, de sentadas familiares E, mais que isso, abriu caminho para que o hip hop em Angola pudesse também ser vulnerável, doce e humano.

Hoje, pode parecer “soft” para alguns. Mas sem esse "soft", muito marmanjo de agora não teria coragem de dizer "amo-te" num beat, ou “que se f**a isso, que se f**a aquilo” num beat. E talvez, sem SSP, não existiriam Kalibrados, Bruna Tatiana, Fabious Biura, Yola Araújo, Army Squad, e talvez, nem Warrant B, Cage One e tantos outros. Nem nós estaríamos aqui a escrever.

Não te influenciou directamente, okay! Fo***se! Os SSP foram os primeiros a gravar um "f**a-se" e passar na rádio. E só isso já vale uma carreira.

"99% de Amor" é aquele álbum que nos lembra de que o rap não é só grito — é também sussurro.

Imagina uma rosa no meio do asfalto, o lado doce da rua, nem todas as ruas são da Dira, algumas são um Jardim de Rosas mesmo, mas ainda encontras batidas e sentimentos... E os SSP tiveram isso. Se para eles foi apenas negócio, bom para eles, nós vivemos isso, nós dançamos isso, nós crescemos nisso, demos festas e criamos famílias disso, estudamos por cima disso, hoje olhamos para o passado e a trilha sonora ainda tem as vozes do Big Nelo, do Jeff Brown, do Paul G e do Kudy.

Nota: Existe um grupo de gangsta rap norte americano, de Kansas City, chamado South Side Posse (SSP) que lançou seu disco de estreia “Ghetto Soldiers” em 1995, não se sabe se os SSP copiaram o nome ou se foi mera coincidência. Por agora, não importa.




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MI MA BÔ, onde Sara Tavares não se apresentou ao mundo — mas acolheu o mundo. É o seu primeiro álbum completo, lançado e...
19/06/2025

MI MA BÔ, onde Sara Tavares não se apresentou ao mundo — mas acolheu o mundo.

É o seu primeiro álbum completo, lançado em 1999, mas não tem pressa de provar nada. Ela apenas canta — com calma, com alma, com uma ternura que parece sussurrada ao ouvido de quem já chorou por dentro.

A sua voz, fina e quente, carrega o peso das raízes e a leveza da esperança. Como se todas as avós de Cabo Verde estivessem a cantar juntas no vento. A faixa-título, “Mi Ma Bô”, é um hino à entrega, uma canção de amor que não tem medo de ser pura, o instrumental é discreto, as cordas deslizam como seda, e a sua voz sopra como brisa em tarde quente.

“Cabo Verde na Coração” e “Voá Borboleta” são o orgulho no crioulo cabo-verdiano. Sara não o usa como adereço exótico — ela molda a língua com amor, e canta como quem cozinha para a família: com gesto lento e olho fechado.

A produção (com toques de Lokua Kanza) não enche a música — ela abre espaço para a voz respirar. É um álbum cheio de vazios bonitos. Os arranjos são minimalistas, feitos de cordas acústicas, pianos suaves, percussões orgânicas — nada artificial, nada a mais. É música sem maquiagem. É o tipo de som que faz calar quem vive com barulho na cabeça.

Com apenas 20 e poucos anos, Sara entrega um disco maduro como se viesse de séculos de silêncio bem guardado. Não há ego. Não há exibicionismo. Só fé. Só identidade. “Mi Ma Bô” foi um sussurro que o mundo escutou devagar — e por isso mesmo ficou. Foi o início de uma trajetória que viria a cruzar gospel, soul, semba, folk e o que mais coubesse no seu coração.

Este não é um álbum para quem tem pressa. É um álbum para quem procura voltar para casa sem precisar se mexer. Sara, ou melhor, mana Sara não canta para o palco. Ela canta para dentro de nós. E é por isso que esse disco não envelhece: porque há feridas que só ela sabe curar.

Sem "Mi Ma Bô" talvez nem existiriam hoje Djodje, Richie Campbell, Dino D'Santiago e, se calhar, nem mesmo Toty Sa'Med

Há discos que não se ouvem. Há discos que nos ouvem a nós.




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O MANDA CHUVA, como diz a lenda, antes de ser o boss do hip-hop tuga, foi estagiário da resistência.Há discos que não se...
18/06/2025

O MANDA CHUVA, como diz a lenda, antes de ser o boss do hip-hop tuga, foi estagiário da resistência.

Há discos que não se explicam por estatísticas nem por prêmios. Explicam-se pela marca que deixam em quem os ouve quando ninguém mais está a ouvir.

Em 1998, Boss AC lançou “Manda Chuva” num cenário onde o rap em português ainda andava a aprender a andar. O AC não só correu — como abriu caminho. “Manda Chuva” é um grito. Um disco que mistura orgulho, crítica social, amor, consciência e flow como quem serve um prato quente e pesado. AC rimava com o estômago, com a alma, com o peso da rua e o sonho de quem ainda nem sabia se era permitido sonhar.

Os beats? Boom bap artesanal, samples cheios de pó e groove, scratches à antiga e influências que iam do reggae à soul. Não é um disco com som de estúdio milionário — é um disco com vida.

E a escrita? A escrita do AC nesse álbum foi escola. Ele não veio só mostrar que sabia rimar — veio mostrar que dava para fazer isso com identidade, com mensagem, com peso. Rima com intenção, com cultura, com vivência. Pega na língua portuguesa e torce até sair mel e vinagre, literalmente.

“Manda Chuva” foi o álbum que muitos ouviram de fones escondidos no recreio. Foi banda sonora de ruas onde ninguém mandava, mas toda a gente precisava de uma voz. E o AC foi essa voz. Hoje é fácil romantizar o passado, mas esse disco não precisa de nostalgia para ser relevante, basta ouvi-lo e perceber de onde vieram muitas das coisas que agora são moda. Sem ele, talvez nem existiriam NGA, PLUTONIO e, bem, nem Allen Halloween ou até mesmo Azagaia.

Respeita os que vieram antes, porque se hoje há palco, é porque alguém andou a pregar tábuas com a própria voz.




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ENTRE(TANTO), vamos começar assim: se o rap português fosse uma escola, Sam The Kid provavelmente seria aquele miúdo que...
17/06/2025

ENTRE(TANTO), vamos começar assim: se o rap português fosse uma escola, Sam The Kid provavelmente seria aquele miúdo que não leva lancheira, leva um MPC.

E enquanto os outros miúdos estão a jogar berlindes ou a desenhar espadas no caderno, ele está a samplear o som do estojo que cai no chão, a campainha das 13h10, e a respiração do segurança da escola para fazer um beat de 4 minutos.

Sim, malta. O álbum Entre(tanto) não é só o começo de uma discografia — é o nascimento de um universo inteiro, onde a língua portuguesa deixou de rimar por obrigação, e passou a rimar por vingança.

Diz a lenda que o álbum foi todo feito no quarto dele, com um computador de torre e uma placa de som que hoje só serviria de pisa-papéis. E é verdade. Mas o Sam nunca precisou de estúdio com isolamento acústico. Ele isolou-se emocionalmente do mundo e fez beats como se estivesse a costurar as veias da própria infância, talvez daí a origem do nome “quarto mágico”.
Cada faixa parece feita com migalhas de discos que a mãe dele escondia nas estantes, pedaços de novelas, ruídos de programas matinais e sermões de rádio AM. Mas ele pega nisso tudo e transforma em batidas que choram. Há beatmakers. E há feiticeiros sonoros com sotaque de Chelas. Ele é o segundo.

Só que o Sam não é só feito de beats, também de letras, escrita, palavras. A escrita do Sam neste álbum é tão honesta, mas tão honesta, que até o Word se recusaria a corrigi-la. Ele fala de tudo, do tédio de estar vivo, das damas que o ignoravam no autocarro, da crise existencial entre ser rapper ou tirar um curso técnico de informática, e até mesmo da eterna dúvida se a sua mãe achava aquilo tudo “uma parvoíce”.

Mas o que mais marca em Entre(tanto) é a maneira como ele expande a língua portuguesa sem pedir licença à gramática. Ele faz palavras comuns parecerem proféticas. Rima como quem mastiga frases, cospe ideias e depois lambe-as de volta para ver se ainda têm gosto.

O Sam trouxe técnicas que o rap em português ainda estava a tentar soletrar. Uso obsessivo de "skits" — pequenos áudios de filmes, chamadas, programas, que colam as faixas como se fossem um VHS emocional. Rimas internas, cruzadas, dobradas e multiplicadas — o gajo é tipo um cubo mágico verbal. A cadência quebrada — Sam nunca seguiu o metrónomo, ele inventava novos, e claro: aquela voz de quem parece sempre estar entre um bocejo e um desabafo. Inconfundível.

Se o rap tuga é hoje uma selva cheia de piratas líricos, filósofos urbanos e poetas do desemprego, é porque Entre(tanto) lhes abriu o caminho. O Sam mostrou que não precisas de fazer rap americano mal traduzido; não precisas de parecer gangsta ou hardcore ao extremo — podes ser vulnerável e partir na mesma os corações e os beats. E que a tua realidade — mesmo que venha com vizinhos barulhentos e arroz de frango — pode ser música para o mundo.

Sem Entre(tanto), talvez não houvesse Valete com tanto verbo, Beware Jack com tanta sede, ou Gson a rimar com tanto peito. Entre(tanto) é como um vinil encontrado no sótão da alma de alguém. É sujo, poético, real, e com aquela energia de quem está a descobrir que a música pode salvar — mesmo que ninguém esteja a ouvir ainda.

Entre(tanto) é o álbum que deu voz a uma geração sem palco, e palco a uma geração sem voz.




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