
01/07/2025
Exu: Resiliência, Transgressão e Ressignificação na Cultura Brasileira
Exu é, sem dúvida, uma das figuras mais complexas, controversas e fundamentais das religiões afro-brasileiras. Como orixá da comunicação, do movimento e das encruzilhadas, ele ocupa um lugar central na cosmologia iorubá e nas práticas religiosas do Candomblé, da Umbanda e de outras tradições afro-diaspóricas. Contudo, sua trajetória no Brasil foi marcada por profundas deturpações, especialmente no contexto do colonialismo, onde Exu foi sistematicamente demonizado por meio de interpretações eurocêntricas e religiosas que não reconheciam sua lógica interna.
Este artigo analisará a origem iorubá de Exu, sua trajetória histórica no Brasil, os impactos do sincretismo negativo, bem como suas ressignificações contemporâneas na arte, na academia e na sociedade. Ao fazê-lo, busca-se compreender como Exu transcende os estereótipos e se afirma como símbolo de resistência cultural, potência transformadora e mediação entre mundos.
Exu na Tradição Iorubá: O Mensageiro e a Ordem Cósmica
Na tradição iorubá, Exu (Èṣù) é um orixá fundamental para o equilíbrio cósmico. Ele é o mensageiro entre os homens e os demais orixás, aquele que conduz os pedidos feitos aos deuses e garante que os rituais sejam recebidos no plano espiritual.
Pierre Verger, em sua clássica obra Orixás, descreve Exu como “o mais humano dos orixás”, por sua proximidade com os homens, sua inteligência aguda e sua capacidade de lidar com ambiguidades. Reginaldo Prandi aprofunda essa visão ao afirmar que “Exu não é o caos, mas o princípio dinâmico que permite a ordem existir. Sua ambiguidade é estrutural, não moral” (PRANDI, 2001, p. 45). Ou seja, Exu é um agente de transformação, necessário para o funcionamento do universo. Ele não representa o mal, mas sim a possibilidade, a dúvida, o trânsito entre forças complementares.
A ligação de Exu com o axé é fundamental para compreender sua importância. O axé é a força vital que anima todas as coisas e seres, e Exu é o orixá que movimenta e redistribui esse poder. Ele é o catalisador do axé, responsável por manter o fluxo entre o sagrado e o profano, o divino e o humano, o visível e o invisível. É também por isso que nenhuma cerimônia religiosa começa sem a devida oferenda a Exu, pois é ele quem abre os caminhos para os demais orixás. Seu caráter dual, brincalhão, às vezes desafiador, está profundamente conectado à própria lógica iorubá de complementaridade e dinamismo, diferindo substancialmente da moralidade binária do cristianismo.
A Demonização de Exu no Brasil Colonial: Sincretismo Negativo e Repressão
Foi exatamente essa divergência de lógicas que contribuiu para a deturpação de Exu no processo de colonização. Com a chegada dos europeus e o início do tráfico transatlântico de escravizados, as religiões de matriz africana foram sistematicamente combatidas e reinterpretadas por uma ótica cristã, que via o mundo em termos absolutos de bem e mal. Exu, por sua natureza ambígua e seu papel de mediador entre mundos, foi rapidamente associado ao Diabo cristão.
Missionários católicos e pastores protestantes, sem compreender os fundamentos da cosmologia africana, passaram a retratar Exu como entidade maligna. Como analisa Luiz L. Marins em A Diabolização das Religiões Africanas, essa demonização não foi apenas uma ignorância conceitual, mas uma ferramenta ideológica para justificar a repressão cultural e religiosa dos africanos escravizados.
Esse sincretismo forçado e negativo teve consequências duradouras. A associação entre Exu e o Diabo consolidou-se na cultura popular brasileira, sendo reproduzida em novelas, filmes, músicas e discursos religiosos. Yvonne Maggie, em Orixás, Caboclos e Guias, demonstra como esse processo de marginalização alimentou o preconceito contra as religiões afro-brasileiras e seus praticantes, associando Exu à feitiçaria, ao “mal” e à criminalidade. Isso resultou na perseguição de terreiros, no silêncio forçado de práticas religiosas e na estigmatização de médiuns e sacerdotes.
Exu na Cultura Contemporânea: Símbolo de Empoderamento e Transgressão
Hoje, Exu ultrapassa os limites dos terreiros. Ele é símbolo de abertura de caminhos, de liberdade e de ruptura com modelos autoritários de pensamento. Exu está nas artes visuais, nas manifestações culturais de rua, nos coletivos afrodiaspóricos, nas universidades e até em campanhas publicitárias que buscam dialogar com a diversidade cultural brasileira. Sua imagem passa a ser reivindicada como instrumento de empoderamento, resistência e criatividade. Como afirma Muniz Sodré em O Terreiro e a Cidade, Exu é a chave que desestabiliza as fronteiras impostas entre o sagrado e o profano, entre o centro e a periferia, entre o possível e o impossível. Ele é, por excelência, a metáfora da transgressão criadora.
Conclusão: Exu, um Olhar Plural para o Brasil
Conclui-se, portanto, que Exu é muito mais do que os estereótipos negativos que ainda circulam no imaginário social. Ele é um orixá profundo, de múltiplas camadas simbólicas e com um papel essencial na manutenção do equilíbrio e da comunicação entre mundos. Sua trajetória no Brasil revela tanto as violências do racismo religioso quanto a potência da resistência cultural negra.
Ressignificar Exu é também um gesto político, uma maneira de reconhecer e valorizar a contribuição africana para a formação do Brasil. Como tal, a demonização de Exu deve ser vista como uma das formas mais explícitas de ignorância religiosa e preconceito étnico-cultural, ainda presentes em muitos discursos contemporâneos. A valorização de sua imagem e de seus fundamentos é um passo necessário para a construção de uma sociedade plural, que respeite as diferenças e celebre a riqueza de suas heranças espirituais.
Repensar Exu, portanto, é pensar o Brasil em sua diversidade. É compreender que a encruzilhada não é o fim, mas o começo de novos caminhos. É entender que o mensageiro ainda tem muito a dizer àqueles dispostos a ouvir.
E que, nas palavras dos antigos, antes de tudo e de todos, é preciso saudar: Laroyê Exu!
Axé
(Autor desconhecido)