09/10/2025
O NEBULOSO CASO ADÉLIO
Adélio Bispo pode deixar a prisão em breve, mas já não fala coisa com coisa
O governo de Minas Gerais informou à Justiça que há vaga na rede pública de saúde para tratar o homem da facada que fez Bolsonaro presidente.
Por Joaquim de Carvalho no Brasil 247
Num churrasco no final de 2018, antes de sua posse como presidente, Jair Bolsonaro pegou uma faca e se dirigiu ao churrasqueiro. Fez o gesto de esfaaqueá-lo e disse que, se concretizasse o ato, a vítima seria eleita presidente (sic) da Organização das Nações Unidas (ONU). A cena revela que Bolsonaro sabia que o encontro com Adélio Bispo de Oliveira, em 6 de setembro dquele ano, foi decisivo para sua vitória eleitoral.
O coordenador de sua campanha no Nordeste, Julian Lemos, disse ao Brasil 247 que, ao visitá-lo no hospital dois dias após o episódio da facada, viu Bolsonaro comemorar. “Só faltou soltar um foguetão. Ele disse: não precisa fazer mais nada, ganhamos a eleição”, afirmou Julian, hoje rompido com Bolsonaro. A Polícia Federal concluiu que houve a facada e que Adélio agiu sozinho.
Mas um dos investigadores me disse que, em nenhum momento da apuração, foi considerada a hipótese de autoatentado — que ele considerava plausível. Na época (julho de 2021), a PF tinha a expectativa de que a viúva de Gustavo Bebianno me concedesse entrevista para eventualmente falar sobre suspeitas a respeito da morte do marido e possíveis confidências sobre o evento de Juiz de Fora.
Renata Bebianno, no entanto, não quis dar entrevista nem falou com nenhum outro órgão de imprensa. Intimada, prestou depoimento à Polícia Federal, mas apresentou uma versão sobre o celular de Bebianno que nenhum policial considerou crível. Antes de morrer, ele havia dito, em entrevista, que enviara o aparelho para os Estados Unidos, pois nele haveria provas contra Bolsonaro.
A PF queria ter acesso ao celular, mas Renata afirmou que isso não era mais possível, porque o havia destruído. Nenhum policial acreditou — mas o que poderiam fazer? Perguntei por que, mesmo assim, não investigavam a hipótese de autoatentado. A resposta foi direta: sem um motivo forte, investigar o presidente da República resultaria no afastamento de todos.
Experiente, esse policial testou a reação de Jair Bolsonaro quando foi chamado ao Palácio do Alvorada para prestar contas do inquérito. A simples convocação dos investigadores já mostrava que Bolsonaro não colocava limites ao próprio poder.
O que o então presidente queria, na verdade, era influenciar os policiais para que uma nuvem de fumaça fosse lançada e a suspeita recaísse sobre um partido de esquerda — nem que, para isso, se criasse um elo entre o PCC e o PT.
Os policiais se fizeram de ingênuos, mas um deles disse a Bolsonaro que tivera a sorte de conversar com Bebianno antes de sua morte. “Eu estive duas vezes com o presidente, e foi a primeira vez que vi que ele balançou”, declarou. Policiais blefam para testar hipóteses — e, nesse caso, a reação de Bolsonaro acendeu a luz amarela.
No entanto, não houve tempo para abrir uma nova linha de investigação. Meses depois, a equipe da PF responsável pelo inquérito foi trocada, e um delegado que já havia investigado o PCC assumiu o caso.
Em 2022, Bolsonaro voltou a usar o caso de Juiz de Fora para tentar se reeleger. Houve então uma estranha operação em Paraisópolis, durante ato de seu aliado Tarcísio de Freitas, que resultou na morte de um morador. Num primeiro momento, influenciadores bolsonaristas tentaram associar o PCC ao PT.
Bolsonaro ainda tentou usar o caso de Juiz de Fora para tumultuar o ambiente democrático depois de perder a eleição. Segundo o inquérito da “Abin Paralela”, houve pressão para que a PF realizasse uma operação na segunda quinzena de dezembro de 2022, com busca nos endereços de um advogado de Adélio.
Nesse caso, o delegado se recusou, argumentando que a medida provocaria tensão desnecessária num período em que havia acampamentos em frente aos quartéis e ameaças contra as instituições democráticas.
Enquanto tudo isso ocorria, no presídio federal de Campo Grande, Adélio mantinha sua rotina de quatro anos: evitava o banho de sol, raramente se lavava, recusava medicamentos e contava histórias cada vez mais mirabolantes.
Aos poucos interlocutores que mantém — entre eles, carcereiros e representantes da Defensoria Pública da União —, disse que organizaria um torneio de UFC no presídio. Agora, tem outra ideia fixa: quer se candidatar nas eleições de 2026. Ainda não decidiu se a presidente da República ou a senador.
A quem duvida de seu potencial eleitoral, afirma ter 80 milhões de seguidores nas redes sociais. Um psiquiatra que integrou sua última junta médica diz que ele já não apresenta apenas o chamado Transtorno Delirante Persistente: agora há sintomas claros de esquizofrenia.
Há dois anos e meio, quando sua irmã Maria das Graças o visitou, Adélio parecia bem melhor de saúde mental. Segundo ela, tinha plena consciência de suas dificuldades e chegou a dizer que só sairia do presídio morto. Quando a irmã perguntou se ele havia esfaqueado Bolsonaro e se alguém estava por trás do ato, Adélio a repreendeu: “Você quer me complicar? Tudo aqui é gravado.”
Maria das Graças só conseguiu o direito de visita presencial ao irmão depois do início do atual governo federal. Mas se engana quem pensa que a situação de Adélio melhorou — ao contrário, o quadro descrito para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos como tortura persiste.
Há cerca de três meses, o deputado estadual Paulo Reis (PT-SP) marcou uma audiência com a ministra Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos e da Cidadania. Na véspera do encontro, quando Reis já estava em Brasília, a equipe da ministra ligou desmarcando. Os assessores souberam que eu acompanharia o deputado e, por isso, cancelaram. O que temem os burocratas do ministério?
Adélio chegou ao ponto previsto pelo juiz Bruno Savino, da 3ª Vara Federal de Juiz de Fora, com quem conversei por cerca de duas horas em 2021.
O magistrado, que já não atua naquela jurisdição, tinha convicção de que tomou a medida correta ao manter Adélio no presídio de segurança máxima, conforme queria o advogado. Também acreditava ter agido dentro da lei ao considerá-lo inimputável, com base em dois laudos — um apresentado pelo próprio advogado e outro de uma junta nomeada pelo juiz.
Não tomou o depoimento do acusado, para garantir que este era de fato mentalmente incapaz. De acordo com o Código de Processo Penal, basta a apresentação dos laudos para a decisão. Ainda assim, há magistrados que fazem questão de ouvir o periciado.
No caso de Adélio, Savino avaliou que haveria um transtorno logístico, com mobilização de equipes de segurança e voos até Juiz de Fora.
A conversa com o juiz foi civilizada e em tom ameno. Ele não permitiu o acesso aos autos, que estavam sob sigilo, mas forneceu cópias de peças que pedi, quase aleatoriamente. No final da conversa, fez um comentário interessante:
Com base nos autos, não tinha dúvida de que houve a facada e de que Adélio agira como um lobo solitário — isto é, sem mandantes. Mesmo assim, ponderou: “Na hipótese de ter havido um autoatentado, foi um plano perfeito: se um dia o Adélio falar algo nesse sentido, a resposta será que não passa do delírio de um louco.”
Com diagnóstico de doença mental, Adélio não poderia f**ar em presídio, de acordo com resolução do Conselho Nacional de Justiça. Porém, a situação foi admitida pelas cortes superiores em razão do governo de Minas alegar falta de vagas.
Há alguns dias, no entanto, o governo de Romeu Zema, de extrema-direita, juntou ao processo um ofício em que oferece vaga para tratamento ambulatorial a Adélio Bispo de Oliveira em sua cidade natal, Montes Claros, onde moram seus irmãos, inclusive Maria das Graças, que luta para se tornar curadora dele.
Com essa informação, Adélio poderá, enfim, deixar o cárcere em que está desde setembro de 2018. Procurei a assessoria de comunicação da Defensoria Pública da União, mas esta, em razão do sigilo do processo, forneceu uma resposta burocrática, sem conteúdo relevante. Mas a tendência é que a DPU tome as providências para Adélio ser libertado e receber atendimento médico.
Até o episódio em Juiz de Fora, Adélio não era conhecido pela violência. Meses antes, teve uma discussão com o marido de uma sobrinha, por causa da conta de luz, mas, segundo o boletim de ocorrência, não partiu dele a agressão.
Trabalhava normalmente, morava sozinho, pagava suas contas e até tinha saldo em banco. Frequentava a igreja, onde pregava, e era visto pelos vizinhos como uma pessoa com conhecimento político acima da média.
Falava sozinho, às vezes brigava consigo mesmo — o que assustava alguns —, mas ninguém diria que fosse louco.
Hoje, sete anos depois de entrar para a história, já não se pode dizer o mesmo.