12/08/2024
𝐄𝐧𝐭𝐫𝐞 𝐌𝐞𝐦𝐨́𝐫𝐢𝐚𝐬 𝐞 𝐑𝐞𝐟𝐥𝐞𝐱𝐨̃𝐞𝐬: 𝐀 𝐂𝐚𝐦𝐞́𝐥𝐢𝐚 𝐕𝐞𝐫𝐦𝐞𝐥𝐡𝐚
Hoje, sempre que pego naquele pequeno espelho de bolso, viajo no tempo. Vejo-me ao espelho, mas não me reconheço: a minha pele enrugada demarcada pelo tempo, outrora sedosa e branca como os campos de algodão da quinta onde ele trabalhava. Ah, memórias...
Vivo no presente, enquanto olho para o meu passado, e vivi o meu passado com vista para o futuro. Hoje, o presente é apenas uma passagem que tortuosamente me relembra que a passagem do tempo é inevitável. Toda a rosa, por mais bela que seja, acabará por perder o seu cheiro, o seu brilho e a sua cor, cedendo ao ciclo natural da vida. Logo, não será mais lembrada e não terá nada nem ninguém que a possa recordar. É assim que me sinto: uma rosa que já perdeu o seu brilho e está prestes a secar.
Ninguém se lembrará de mim, porque nunca tive a oportunidade de me tornar uma mulher completa. Não fui mãe e hoje sou apenas a última sobrevivente da minha família; em breve, a minha linhagem acabará. Porque não tive filhos? Eu queria, mas o meu marido foi tirado de mim muito cedo.
Tínhamos planos de quando ele voltasse, irmos viver na nossa casinha da aldeia, mas a guerra do ultramar fez com que isso não acontecesse. Ele nunca mais regressou, e com ele, perdi os sonhos que tanto planeávamos.
Não me casei nem quis mais ninguém na minha vida. Trabalhava no campo e vivi tempos de fome. Não era o estômago vazio que me atormentava, mas sim o vazio que sentia no peito ao saber que nunca mais voltaria a ver o único homem que alguma vez amei. Nunca poderia dar à luz e segurar os nossos bebés ao colo, que serviriam de testemunhas do nosso amor e dariam continuidade à nossa família. Nunca pude ouvir os seus choros, gargalhadas e nem trocar as suas fraldas. Queria tê-los visto crescer e tornarem-se homens ou mulheres de bons princípios que nos encheriam de orgulho. Resta-me este vazio crónico que nunca foi preenchido até agora, e penso que nunca será.
Preferi uma vida de solidão para preservar a memória dele e os meus sentimentos, numa promessa feita num altar perante Deus. O preto passou a ser a única cor que uso; sei que ele não gostava quando usava roupas escuras, já que andava sempre com vestidinhos floridos já gastos, pois não tínhamos dinheiro para comprar roupa nova. Eramos tão felizes com tão pouco, porque tudo que nós precisávamos encontrávamos um no outro.
Não gosto de falar sobre aquele tempo, talvez seja pela falta de liberdade que vivia na época. Vivíamos com fome e medo, oprimidos por um sistema que caiu em 1974. Se tivesse acontecido mais cedo, talvez tudo fosse diferente. Talvez, nessa realidade, pudesse viver uma vida feliz e completa. A falta de liberdade tira-nos tudo o que nos é precioso, desde a capacidade de pensar até à liberdade de falar, de agir e de amar. Ainda hoje, apoiam regimes autoritários que, por ganância, criam guerras e atormentam vidas inocentes, gerando mais filhos da guerra, com traumas que nunca desaparecerão das suas vidas. Isso tudo para quê? Não somos todos humanos?
Após o 25 de Abril, aprendi a ler e escrever. Dediquei o meu tempo livre à escrita, porque me fazia esquecer temporariamente da dor que sentia e da tristeza que emanava das profundezas da minha alma. Agora, não quero mais falar sobre coisas tristes. Quero-vos contar como o conheci. Quem? Perguntam-se vocês. Em breve, irão conhecê-lo.
Recordo-me como se fosse hoje. Fui à missa de domingo com os meus pais, como era costume. Era 22 de janeiro de 1961, o tempo estava cinzento e o frio pairava na nossa pequena aldeia. Estava a usar o meu vestido rosa com flores brancas bordadas, que tinha recebido de uma prima minha que já não lhe servia, e uns sapatinhos com a sola rompida que a minha mãe comprara para mim no meu aniversário. O meu cabelo estava bem aprumado como a minha mãe me orientava.
No adro da igreja, vi um lindo homem e o meu coração começou a palpitar quando o vi. A sua beleza era algo de extraordinário, diria até que era um anjo esculpido por Deus. Estava com um fato castanho, sapato bem engraxado e brilhantina no seu cabelo. Por acaso do destino, falámos após a missa e sentimos que nos daríamos bem, porque tínhamos gostos semelhantes. Descobri que o seu nome era Adão e que morava muito perto de mim. Desde então, começámos a conversar sempre, todos os domingos.
Com o passar do tempo, fomos ficando mais próximos. Num domingo, logo pela manhã, colheu uma flor do jardim da sua mãe e trouxe-a, quando me viu colocou-a a enfeitar o meu cabelo. Eu fiquei visivelmente envergonhada, corei e para minha surpresa ele sorriu para mim e nesse momento sei que o que estava a sentir por ele era recíproco. Nada falei, mas acho que os meus olhos falaram mais do que as palavras seriam capazes de expressar.
Com o passar das semanas, os encontros dominicais tornaram-se o ponto alto da minha semana. Adão e eu partilhávamos histórias, sonhos e até mesmo segredos. À medida que nos conhecíamos melhor, percebíamos que tínhamos sido feitos um para o outro, desde os nossos valores até aos nossos gostos pessoais.
Um dia, enquanto caminhávamos pela aldeia após a missa, Adão tomou coragem e expressou os seus sentimentos por mim. Inicialmente ficou calmo e pensativo e ao passarmos pelo jardim da aldeia repleto de camélias, pediu para que me sentasse no banco do jardim e olhou para mim. O seu olhar sincero e o seu sorriso tímido revelaram o quanto ele se importava comigo.
Sussurrava o que o seu coração gritava, belas palavras adornadas pelo seu doce tom de voz. Com apenas 19 anos, sentia-me tão jovem, mas já desejava construir uma vida com ele. Estava surpreendida, mas emocionada, confessei-lhe que também nutria sentimentos por ele. A troca de olhares intensificou o clima, e Adão, mesmo sendo cauteloso, preferia arriscar e seguir o que o seu coração mandava. Cortou uma flor vermelha de uma japoneira que lá se encontrava e foi pedir a minha mão em casamento aos meus pais.
Quando chegou a minha casa e contou as suas intenções, o meu pai teve uma conversa de homem para homem com Adão e após isso, aceitou o seu pedido. Antes de ir embora, tirou uma pequena caixa de madeira, onde tinha os dois tesouros que a sua falecida mãe lhe deixara para quando encontrasse a mulher com quem ficaria para a sua vida toda. Tinha um espelho prateado e um anel muito bonito, era de ouro sem gravações, mas para mim era o anel mais bonito que eu já tinha visto, e na verdade é o mais bonito que vi em toda a minha vida. Pediu-me em casamento e contou-me o simbolismo dos presentes que me estava a dar.
O dia do nosso casamento foi como um poema escrito pelos deuses, onde cada verso era uma nota de harmonia e beleza. O sol, com os seus raios dourados, dançava nos campos, pintando a paisagem com tons de ouro e promessas de um futuro radiante. O céu, azul como o mais profundo dos oceanos, abençoava o nosso amor com a sua serenidade etérea.
Envolta num véu de emoção, vesti o meu traje nupcial, cuja renda delicada tecia histórias de amor e promessas de eternidade. Cada toque do tecido era um sussurro suave do destino, unindo-me ao meu amado de forma indelével.
Na igreja, os cânticos suaves ecoavam como murmúrios divinos, enquanto eu caminhava em direção ao altar, onde Adão aguardava, radiante como uma estrela cadente na noite escura. Os seus olhos, profundos como o infinito, encontraram os meus, e num instante, todo o universo pareceu convergir para aquele momento único de amor e união.
O senhor padre, com a sua voz melodiosa, entoou palavras de sabedoria e bênçãos, abençoando o nosso compromisso com a luz da eternidade. Trocamos votos, jurando amor eterno e fidelidade, enquanto o aroma das flores frescas envolvia-nos como um abraço celestial.
Após a cerimónia, a festa começou, e o jardim das camélias encheu-se de risos, danças e alegria. Cada momento era uma poesia em movimento, uma sinfonia de amor e felicidade que ecoava nos corações de todos os presentes.
E assim, sob o manto do céu estrelado, começamos a nossa jornada juntos, navegando pelos mares da vida com a certeza de que o nosso amor seria o farol que nos guiaria em todas as tempestades.
Após um ano, o meu marido foi chamado para o serviço militar e teve que partir para combater na guerra do ultramar. Antes de partir, Adão fez questão de colocar uma flor de japoneira no meu cabelo, como era costume entre nós. Naquele momento de despedida, o aroma suave da flor se misturava com as lágrimas que teimavam em escapar dos nossos olhos. Prometemos esperar um pelo outro e manter viva a chama do nosso amor, apesar da distância e dos desafios que enfrentaríamos.
Como termina? Vocês já sabem. Quem eu sou? Uma mulher entre muitas que perdeu o marido e não quis constituir família para honrar a memória do seu amor verdadeiro. Fui apelidada de "Camélia Vermelha" pelos que me conhecem, um nome que carrega consigo o simbolismo da luta, do sangue, da perda e do amor. Assim como a flor, que floresce vibrante e forte mesmo em meio à adversidade, eu também floresci na minha solidão, encontrando força nas minhas próprias raízes. Cada pétala da camélia vermelha é como uma página da minha história, marcada pelas cicatrizes da vida.
Nas noites silenciosas, quando o vento sussurra segredos antigos e as estrelas brilham como testemunhas do tempo, filosofo sobre o significado da minha existência. Será que a solidão é realmente uma escolha ou apenas o destino que nos é imposto? Será que a verdadeira liberdade reside na aceitação da nossa própria essência, mesmo que isso signifique caminhar sozinho pelo mundo?
Em cada pétala da camélia vermelha vejo a dualidade da vida: a beleza efêmera e a fragilidade da existência. Assim como a flor que desabrocha e murcha, também nós enfrentamos o ciclo eterno de nascimento e morte, de perdas e recomeços. Mas no meio desse turbilhão de emoções e experiências, encontro a minha própria verdade, a minha própria essência, como a camélia vermelha que desafia o tempo e floresce mesmo nos terrenos mais áridos.
𝐄𝐬𝐭𝐞 𝐭𝐞𝐱𝐭𝐨 𝐞́ 𝐮𝐦𝐚 𝐫𝐞𝐟𝐥𝐞𝐱𝐚̃𝐨 𝐩𝐫𝐨𝐟𝐮𝐧𝐝𝐚 𝐬𝐨𝐛𝐫𝐞 𝐚 𝐯𝐢𝐝𝐚, 𝐨 𝐚𝐦𝐨𝐫 𝐞 𝐚 𝐩𝐞𝐫𝐝𝐚, 𝐞 𝐞́ 𝐮𝐦 𝐞𝐱𝐞𝐦𝐩𝐥𝐨 𝐯𝐢́𝐯𝐢𝐝𝐨 𝐝𝐚 𝐫𝐞𝐚𝐥𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞 𝐝𝐞 𝐦𝐮𝐢𝐭𝐨𝐬 𝐩𝐨𝐫𝐭𝐮𝐠𝐮𝐞𝐬𝐞𝐬. 𝐄𝐬𝐭𝐞 𝐭𝐞𝐱𝐭𝐨 𝐞𝐬𝐭𝐚𝐫𝐚́ 𝐢𝐧𝐬𝐞𝐫𝐢𝐝𝐨 𝐧𝐨 𝐦𝐞𝐮 𝐩𝐫𝐨́𝐱𝐢𝐦𝐨 𝐥𝐢𝐯𝐫𝐨, 𝐨𝐧𝐝𝐞 𝐩𝐫𝐞𝐭𝐞𝐧𝐝𝐨 𝐞𝐱𝐩𝐥𝐨𝐫𝐚𝐫 𝐦𝐚𝐢𝐬 𝐝𝐞𝐭𝐚𝐥𝐡𝐚𝐝𝐚𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐞𝐬𝐬𝐚𝐬 𝐪𝐮𝐞𝐬𝐭𝐨̃𝐞𝐬 𝐞 𝐚𝐩𝐫𝐞𝐬𝐞𝐧𝐭𝐚𝐫 𝐮𝐦𝐚 𝐯𝐢𝐬𝐚̃𝐨 𝐚𝐛𝐫𝐚𝐧𝐠𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐝𝐚𝐬 𝐞𝐱𝐩𝐞𝐫𝐢𝐞̂𝐧𝐜𝐢𝐚𝐬 𝐞 𝐞𝐦𝐨𝐜̧𝐨̃𝐞𝐬 𝐪𝐮𝐞 𝐝𝐞𝐟𝐢𝐧𝐞𝐦 𝐚 𝐯𝐢𝐝𝐚 𝐝𝐞 𝐦𝐮𝐢𝐭𝐨𝐬 𝐩𝐨𝐫𝐭𝐮𝐠𝐮𝐞𝐬𝐞𝐬. 𝐀𝐭𝐫𝐚𝐯𝐞́𝐬 𝐝𝐚 𝐧𝐚𝐫𝐫𝐚𝐭𝐢𝐯𝐚, 𝐭𝐞𝐧𝐡𝐨 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐨𝐛𝐣𝐞𝐭𝐢𝐯𝐨 𝐟𝐨𝐫𝐧𝐞𝐜𝐞𝐫 𝐮𝐦𝐚 𝐫𝐞𝐩𝐫𝐞𝐬𝐞𝐧𝐭𝐚𝐜̧𝐚̃𝐨 𝐟𝐢𝐞𝐥 𝐞 𝐜𝐨𝐦𝐨𝐯𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐝𝐚𝐬 𝐫𝐞𝐚𝐥𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞𝐬 𝐯𝐢𝐯𝐢𝐝𝐚𝐬 𝐩𝐨𝐫 𝐦𝐮𝐢𝐭𝐨𝐬, 𝐭𝐫𝐚𝐳𝐞𝐧𝐝𝐨 𝐚̀ 𝐥𝐮𝐳 𝐚 𝐫𝐢𝐪𝐮𝐞𝐳𝐚 𝐞 𝐚 𝐜𝐨𝐦𝐩𝐥𝐞𝐱𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞 𝐝𝐚𝐬 𝐬𝐮𝐚𝐬 𝐡𝐢𝐬𝐭𝐨́𝐫𝐢𝐚𝐬 𝐩𝐞𝐬𝐬𝐨𝐚𝐢𝐬.
Autor: Dr. Rúben Baptista