18/10/2025
Ao evocar a gastronomia Minhota, é comum observarmos a exaltação dos pratos mais badalados como o caldo verde, cabrito, lampreia, bacalhau, cabidela, sarrabulho, entre outros de inegável valor cultural e sabor.
Este receituário, configura hoje um pilar importante na identidade culinária do Minho, no entanto, a nossa cozinha transcende essa mesa farta, outrora um privilégio restrito aos solares e casas senhoriais da região. Pertencentes a famílias abastadas, residentes nas vilas, burgos ou burgueses, detentores de vastas terras e gado, em que os repastos servidos à mesa eram um reflexo e um ditame do seu estatuto social.
Contudo, hoje quero falar-vos da cozinha popular ou em melhores palavras, os “comeres do pobre”. Reminiscências de tempos de profunda miséria que assolaram a maioria das famílias minhotas, distribuídas pelos vinte e três concelhos (até 1936) de terras enraizadas na vida rural.
Esta culinária de que vos falo também pertenceu ao quotidiano dos meus familiares, avós, pais, tios, vizinhos, conterrâneos e conhecidos das diversas terras às quais estou ligada (Fragoso-Barcelos, Viana-Ponte da Barca, Arcos de Valdevez), que tantas histórias me contam deste período.
Escuto-os atentamente, e curiosamente, relatam não só tempos de dureza, mas também de uma época de uma bonita união e entreajuda na sua comunidade.
Cresceram sob o jugo de uma subsistência precária, marcada por uma roda alimentar composta apenas por farinha de milho, as partes gordas do reco de salga, o unto, a couve, o feijão, leite e os ovos.
A disponibilidade destes produtos variava entre zonas ribeirinhas, litorais ou serranas, sendo por vezes comprados, outras vezes recebidos como pagamento por trabalhos ou criados nas suas próprias leiras.
Tal dieta resultava, inevitavelmente, em lacunas nutricionais, comprometendo o crescimento e gerando inúmeros casos de raquitismo entre os mais novos.
Não que não desfrutassem também de ingredientes e iguarias mais nobres. Mas estes estavam estritamente reservados para as datas festivas, que marcavam os ciclos de vida e algumas festividades de cariz litúrgico. Durante o restante ano, imperava à mesa a cozinha de subsistência e sobrevivência.
Tal como este caldo de farinha, maioritariamente confecionado pelas matriarcas da família, num grande caldeirão negro de ferro, numa cozinha farruscada pelo fumo, e servido ao meio-dia numa mesa com lugar para dez bocas. O pai detinha a primazia na refeição e no pedaço de carne que a acompanhava, pois constituía a força de trabalho e precisava de segurar o caniço por mais umas horas de labuta.
As crianças figuravam sempre o fim da lista, e pouco lhes sobrava além da água do caldo com um pedaço de broa bolorenta e o rabo de uma sardinha.
Para o caldo, numa época de escassez de batata, a farinha era a astúcia para conferir substância à refeição. Na mesma água de cozer o feijão, juntava-se um osso salgado para dar gostinho a presigo. Mais tarde, entravam as couves, e por fim, a farinha milha peneirada para o caldo engrossar. Era a refeição mais abonada do dia.
Já há alguns anos que a vida melhorou. Ultrapassadas as agruras, tem-se notado uma vontade coletiva de resgatar os costumes e os comeres antigos. Embora associados a recordações difíceis, transportam consigo uma profunda memória afetiva familiar. Mães, avós e bisavós ocupam um lugar carinhoso e cativo nas histórias relatadas por estes filhos e netos.
Poderão encontrar esta receita e muitas outras, associadas aos comeres ricos e pobres, que prevaleceram no tempo ou que, pela sua relevância, faço questão de resgatar, na pág. 26 do meu livro "Colheita de Memórias", que poderão adquirir em: https://bit.ly/3UGEmTG