Escritos Por Mim

Escritos Por Mim Escritos Por Mim... uma forma criativa e diferente de cruzar a inventada historia com a riqueza da palavra escrita.

17/03/2024

Hora 6 de divorciada

“Há quanto tempo me observas?”questionou Amália à sua filha, fitando- a nos seus olhos, e forçando um sorriso. Em pensamento, Amália pescava no humor vítreo dos olhos de sua filha o seu espaço, talvez um rasto de um espaço com a forma de uma mãe.
E demorou nela o seu olhar. E perdeu-se no pensar ”que coisa tão pequena…tão bela”.
Mas a vida real de Amália entrava de novo em suspense, através do refúgio do seu pensar. Amália havia transitado o seu pensamento para um outro espaço mental, um espaço masculino, agora fisicamente vazio, só preenchido pelas palavras memorizadas e repetidas …. “Não te vás” e que havia escrito há algum tempo… Aquele espaço azul, m aquele tão apetecido espaço mas agora talvez morrido.
E recordou:
"Não te vás"
Não te vás embora...sem te despedir
Diz me a razão da partida
O abandono de tão grande amor
Que preenche as quadrículas do meu pensamento.

Não te vás embora...sem te despedir
Sem soprares um último beijo
Sem encostares ao meu peito
Sem silenciares o meu desejo.

Não te vás embora...sem te despedir
Sem te ouvir dizer adeus pela última vez...
Deixa me esquecer o carril da nossa felicidade
A cadência das imagens vivas registadas em pensamento
Deixa me apagar os vestígios de ti em mim
Não te vás embora, sem te despedir.”
Escritos por Mim ( Ana Paula)

Mas Amalia reconhecia poder haver mortes silenciosas, invisíveis e sem enterro. As definidas como mortes progressivas.
E assim o seu mundo, o mundo de Amália mudara….

Mais uma vez beliscou-se para acordar do seu pensamento. O belisco passou a integrar a sua rotina, para que se pudesse tornar novamente real. Foi esta a forma, a beliscadura, ou melhor, a mordedura, que Amália utilizou para deixar de ser um fantasma de si. Amália sangrava assim, e muitas vezes, pela boca. Mordia a face interna dos lábios, para regressar da borda de lá, a si. O sabor avinagrado do sangue, que engolia, acordava-a do delírio, do seu silêncio de quando se encostava a gritar no seu quadrado preto dos pensamentos.

Emergiu novamente no pensamento de Amália, enquanto fitava a filha, a linda trouxa que lhe entregaram na maternidade, com um ser pequeno e chorar e envolta numa mantinha de la rendada e com o seu nome bordado. Nada calava aquele pequenino ser, assim Amália recordava.

Voltou a si, e naquele instante apelou à pouca coragem, e procurou o seu instinto maternal, e jogou, de rompante, como se a vida se tratasse de um jogo sob um brilhante tabuleiro de xadrez: “Como estás, filha? Dormiste bem?”
Acompanhou a filha ao seu quarto, pedindo-lhe que o arrumasse e não deixando transparecer a tragédia que se estava a alojar no seu ser.
“A perda eclipsa me”, pensa Amália. “Como poderei voltar ao meu lugar? “. “Só afirmo, com dificuldade, a minha presença física, refletindo se no meu rosto a perda da minha alma”. “Sou apenas um nome, o meu nome. Estou irreconhecível. Sinto-me perdida.”

E assim Amália sentou-se na sua secretária e escreveu
“Flor de Lis”
“Chamem por mim baixinho...
Digam o meu nome devagarinho
Estendam um braço e depois o outro
Envolvam me num só abraço
Chamem por mim baixinho
Encostem vossas bocas no meu ouvido
Para que as palavras não se percam e cheguem dentro do mim
Chamem por mim baixinho...

Para não acordar as lembranças
Para não avivar as destemperanças
Chamem por mim baixinho...
Deixem me adormecer junto a vos
Sonhar , feliz, que estão aí e
Aqui, no enlevo da quentura
Chamem por mim devagarinho...
Para que o momento perdure
Continue como um sopro mágico
Chamem por mim baixinho...
Agarrem me pelo eco do meu nome
Não me deixem cair
Chamem por mim devagarinho...
Façam laços de ternura
Prendam com um nó cego a amargura
Chamem por mim baixinho...”

Encolheu-se. Fez se muito pequena, ao abraçar os joelhos contra o peito, como gostava de estar no seu quadrado preto.
Fechou os olhos.
E esperou.

Escritos por mim ( Ana Paula) 2024

03/02/2024

“Hora A de divorciada”
Foi há oito anos. O rótulo foi lhe dado. “Divorciada”, assim constava.
Ele, o parceiro, também havia desaparecido há muitos anos, “pareciam muitos anos”, assim Amália pensava, mais concretamente “há oito anos”.
“É precisamente o tempo que durmo a ocupar um lado da cama. E há oito anos escolhi passar a dormir no lado dele, o lado de cá. Porque será? Abandonei o meu, o lado de lá. Custa-me recordar o tempo em que dormia do lado de lá.” Amália assim refletia, num pensamento retrospetivo.
Continuou na sua análise.
“Dormir do lado de cá já me é familiar mas, ainda, um tanto estranho. Ajudou me a reinventar, talvez. Um novo ser, e reinventei me como mulher, mae, filha e adotei o estereótipo de divorciada.” Concluiu para si “Só não consegui como esposa, pois havia deixado de o ser”.
Os espaços vazios foram assim adquirindo formas, outras formas diferentes, outras indumentárias.
Amália continuava a pensar.
“Passei também a vestir- me como executiva. O sucesso da vestimenta, que aceitei com compaixão.” Na altura, fiquei incrédula. Não sabia ser capaz”.

“Toda a mulher divorciada f**a estilhaçada”.
Pensava Amalia. “E assim f**a também o amor.” “Por tudo e por todos. Não sentir nada por ninguém”, assim ela vaticinava. “Não contem mais comigo”. E Amália criou para si a expressão legitima do “não amar”, reflexo do estilhaço, da vidraça partida.
E recordou uma fatalidade.
Num dia, talvez um dia outonal, conduzia o seu carro devagar, por estradas secundárias que passou a usar para mais tempo poder chorar e gritar e ninguém o testemunhar.
Dava voltas e mais voltas, e sentia na condução do carro a oportunidade única de o poder girar, voltar, rebolar, acidentar.
Sentia Amalia, nesses terríveis momentos, que começava a desaparecer. A esvair-se numa espiral, como se estivesse num carrossel, numa roda gigante, de grande velocidade, em feira popular. A roleta da vida. É só quando lhe restava apenas o murmúrio, tal o desespero do soluçar e da falta de ar na garganta, quase com os sentidos perdidos, parava o carro… e nesse dia, no tal dia outonal, começou a dedilhar:

“A Roleta na Vida”
Amigos!
Não quero likes nem dislikes
Nem beijos nem abraços
Nem sorrisos nem lágrimas
Nem palavras nem sons nem vozes
Há apenas um obrigada
Pela partilha nas alegrias
Pela solidariedade nas tristezas
Pelo silêncio nas amarguras
Pelo eco na felicidade
Na roleta da vida
O tambor do revólver foi fechado e girado
A localização da bala era desconhecida
O gatilho foi puxado
E os estilhaços dispersaram!

Escritos por mim (Ana Paula)

Bondosa, fiável, crédula, divertida, imaginativa, mas sem o pudor do amar. Quem se aproximava assim pressentia a vidraça partida e a incapacidade de Amália se voltar a doar, um dia.

Escritos por Mim ( Ana Paula) 2024

01/12/2023

“Hora 4 de divorciada”
Quando Amália entrou em casa, com os olhos dilacerados fixos em nada, a funcionária aspirava, a máquina de lavar torcia e a sua filha estava sentada a tomar, talvez, o seu pequeno almoço. Ninguém tinha nada a haver com a zanga, o desejo de querer estar só, a vontade que Amália sentia de aliviar e chorar. Mas para quê, questionava-se ela “Enruga a pele, f**amos tristes, não vale a pena”. Amália lembrava-se dos conselhos dados por amigas, verdadeiras amigas, quando torrencialmente vertia lágrimas após a separação, até à exaustão. Tinha em consideração um conselho que lhe havia sido dado: “Nada vale a pena quando a alma é pequena”. Lema que Amália trazia consigo, a ocupar o espaço vazio gerado pela identif**ação da potencial traição através de um post do facebook. O espaço reservado ao amor, que se julgava fiel, era agora fel. Um espaço amargo, nauseabundo.
A resolução de Amália escrever todas as horas e minutos da experiência que estava a viver tinha surgido momentos antes de entrar em tribunal, com a calma aparente de quem inicia um projecto e que requeria cuidado, mestria e valentia.
E assim, imediatamente após a entrada em casa e os cumprimentos de circunstância, sentou-se a redigir um texto, capaz de a ajudar a extravasar a sua emoção, a vontade de gritar, de correr, de se libertar da roupa e poder entrar no mar e afundar, …, ou num morno e pequeno rio, ou em piscina azulada, talvez de água quente. Necessitava de sentir a macieza da agua na sua dilacerada pele.
E escreveu assim Amália:
“Atirei-me borda fora da minha vida. Passei a contar e a fazer parte da carga humana arrumada e encostada e a beneficiar de anti depressivos.
Estou acantonada numa personagem ficcionada, constituída como mais uma anónima sem um tempo e sem um lugar”
E continuou:
“Bordas ... da vida”
Na borda ... da cama, deito
Na borda ... da loucura, grito
Na borda ... do sonho, fantasio
Na borda ... da vida, resigno
Na borda ... do pensar, vacilo
Na borda ... do confessionário, perdoo
Na borda ... do medo, subtraio
Na borda ... da família, recolho
Na borda ... do amor, amo
Na borda ... do olhar, acostumo
Na borda ... da traição, amaldiçoo
Na borda ... do abismo, lanço
Na borda ... do trabalho, afadigo
Na borda ... da dor, silencio
Na borda .... do desespero, choro
Na borda ... da paixão, pondero.
E assim,
Somamos fantasias
Subtraímos realidades
Acalmamos desgostos
Encurtamos distâncias
Amaldiçoamos realidades
Nas bordas ... da vida.

Levantou-se da cadeira e olhou ao redor.
A sua filha olhava fixamente para ela. Amália olhou nos olhos de sua filha, e encontrou neles, também, um espaço vazio.
E disse-lhe.

Escritos por Mim ( Ana Paula) 2023

08/11/2023

“Hora 5 de divorciada”

"Sobrevivente"
Emprestei-me à vida
Sou uma sobrevivente consentida
Tingida de saudades
Numa sequência de misérias escondidas
A preto e branco retidas
A sobrevivente, que a ninguém importa...em vida inquieta
De amor ter e temor de o perder
Se conjugam neste meu ser.
Escritos por Mim (Ana Paula) 2018

Amália prometeu a si mesma que o trabalho deixaria de a absorver aos sábados e domingos. Prometeu, ou melhor, jurou, com os dedos cruzados e atrás das costas, que numa próxima relação faria tudo diferente. Muito diferente…e sonhava: “Espreitaria o alaranjado poente, banharia os seus pés nas ondas do mar esparramadas na areia brilhante, ouviria os pássaros a assobiar nas madrugadas acordadas por um amor ardente, escutaria o amor embevecida pelas tonteiras jocosas proferidas”.

Há muitos dias que Amália não escreve. Andava com o pensamento entristecido porque lhe faltava a parceria masculina, o complemento da sua sexualidade. Assim sendo, sentia-se incompleta. Uma forma de atenuar as dores do desapego era sempre pegar na sua caneta mais próxima e rabiscar os apontamentos que lhe libertavam a alma. Andava zangada. Zangada com a dificuldade da vida, ou melhor, como julgava as suas circunstâncias da vida. Fazia uma semana que a sua mãe se tinha ido embora. Apesar do ocorrido ser de grande excentricidade, porque diferente, sentia que a vida não estava nas suas mãos e geria o dia a dia com imensa dificuldade e algum descontrolo.
Amália pensava frequentemente “Reconheço-me desorganizada e desorientada e hoje estou destruída. Sou nada nem ninguém.” E falava para os seus botões “Não choro para não f**ar doente, mas mantenho-me num estado dormente, com vontade de f**ar ausente e com ninguém. Não quero ser. A tristeza entranhou-me na pele e esta adquiriu o aspecto deprimido, e estou convencida de que a vida é curta e temível”.
E pegou na caneta. Amália foi escrever sobre Antenor Aparecido, o rapaz do seminário, personagem do romance que havia iniciado, chamado “Arcanja Paixão”.

Não tinha ninguém em casa. O filho do meio estava a chegar de Torres Vedras pois tinha lá ido passar o Carnaval.
“E assim ando eu, perdida ...” e escreveu

“Rasgar o passado”
"RASGAR"
Deixem me...rasgar o vento
Verter em lágrimas
A ilusão a frustração e a paixão
Deixem me...rasgar o tempo
Ecoar na imensidão
A dor o temor e o amor
Deixem me...rasgar a chuva
Aparar as lâminas afiadas geladas
De tão molhadas
Deixem me...rasgar o relento
O tom cinzento bolorento
Do desalento
Mas...
O tempo mói e corrói, não destrói
A paixão esmorece, não se esquece
A teia do silêncio engrandece, não empobrece
O hábito da solidão permanece, mas enriquece

Deixem me...rasgar a vida
encardida
Em que o cansaço da rotina dói
O gemido da desilusão entranha
A greta da tristeza cristaliza
O ruído da paixão mortif**a
A metastase do pensamento
Dissemina
Deixem me...Rasgar a dádiva da memória
Esquecer a velha e
Criar uma nova história
Voltar para o encosto do mar
Sentir o raio quente do Sol
Na verticalidade do ser
Erguer e não sucumbir
E assim renascer
Deixem me ... Rasgar
Rasgar
Até mais não poder.”

Escritos por Mim (Ana Paula) 2023

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Campia
Viseu

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