17/10/2025
CRÓNICA: “O REI ESTÁ NU E O MPLA APLAUDE”
Há perguntas que não pedem resposta, apenas provocam reflexão. Quem sequestrou quem? O MPLA sequestrou João Lourenço ou foi João Lourenço quem sequestrou o MPLA?
Difícil dizer. O certo é que o partido no poder parece hoje uma sinfonia de um só instrumento, um coro de vozes que se harmoniza apenas com o tom do chefe. Se o chefe disser que o céu é preto, todos dirão “sim, camarada, é preto”. Se amanhã disser que é vermelho, os mesmos aplaudirão: “é verdade, vermelho é o tom da revolução!”. Eis a doença crónica do MPLA: o medo de pensar, o receio de discordar, o vício de obedecer.
Nesta quarta-feira, 15 de outubro, o país ouviu o discurso sobre o Estado da Nação, e, como de costume, procuramos a tal agulha no palheiro, um fio de verdade, um lampejo de realismo, um sinal de que o Presidente da República ainda tem os pés no chão do país real, e não na fotografia colorida do país imaginário que lhe mostram.
Mas, convenhamos: o discurso foi mais retrato de estúdio do que paisagem do povo. Uma maquilhagem bem passada sobre uma realidade que teima em não sorrir.
Entre as muitas palavras, há uma “agulha no palheiro”: o anúncio da condecoração das figuras esquecidas que assinaram os Acordos de Alvor. Finalmente, depois de muita teimosia, o Presidente João Lourenço decidiu homenagear Holden Roberto e Jonas Savimbi.
Mas aqui começa a tragédia grega, digna de Ésquilo: quem, afinal, mandou nessa decisão? O Presidente, que outrora recusou? Ou o MPLA, que antes aplaudiu a recusa e agora festeja a reviravolta?
É o teatro do absurdo. Ontem diziam “jamais”, hoje aplaudem “finalmente”. É a metamorfose dos obedientes. Aqueles que, como marionetes, seguem o movimento das cordas puxadas de cima, sem perceber que, no fim, serão eles próprios a cair com o boneco principal.
O que assistimos é o retrato de um partido esvaziado de crítica interna, onde o debate é uma heresia e a discordância, um crime. João Lourenço tornou-se o sol em torno do qual todos orbitam, mesmo quando a sua luz cega mais do que ilumina. O MPLA, outrora máquina de ideias e de combate, é hoje uma congregação de acólitos que rezam o mesmo credo: o da infalibilidade do chefe.
A história, porém, é impiedosa com líderes que confundem poder com destino. Da Ásia à Europa, da América à África, os exemplos são abundantes. Na Europa, Hi**er acreditava que o mundo se curvaria ao seu delírio, terminou no subsolo, cercado pelas ruínas do próprio império. Na Ásia, Pol Pot tentou redesenhar o povo à sua imagem e acabou como um espectro do terror que criou. Na América Latina, ditadores como Pinochet ou Stroessner viveram o mesmo ciclo: o do culto, da arrogância e da queda. E em África, Mobutu, que se dizia “guia do Zaire”, acabou exilado, traído pelos seus e esquecido pelos que o aplaudiam.
Esses líderes tinham algo em comum: o partido, o exército ou o povo transformaram-se em espelhos do seu ego. Nenhum deles soube ouvir quando ainda havia tempo. Nenhum acreditou que o silêncio em volta era medo, e não lealdade. Quando o ruído da obediência se transforma em silêncio, é porque o poder já começou a morrer.
Pena é que João Lourenço pareça não ver que está a repetir esse mesmo guião. Está a aproximar-se do fim do mandato, e as decisões que toma, muitas vezes unilaterais, impopulares e teimosas, podem ser a corda que o próprio MPLA ajudará a apertar. Como nas fábulas africanas, o leão, ao caçar demais, acaba por esquecer que também pode ser caçado.
O MPLA precisa de recuperar a coragem de se olhar no espelho sem o reflexo do chefe. Precisa de reaprender a dizer “não” quando o rumo é errado. Caso contrário, a história tratará de escrever o epitáfio: “Aqui jaz um partido que se confundiu com um homem e morreu com ele.”
E, se a política angolana fosse uma fábula, esta terminaria assim: “O chefe acreditou que o silêncio era respeito. Mas era apenas o som da corda sendo trançada.”
A história, como as fábulas, ensina, mas só aprende quem tem humildade. E, infelizmente, a humildade nunca fez parte do manual do poder.
Por: Horácio dos Reis | Jornalista