26/12/2025
𝐑𝐀́𝐃𝐈𝐎 𝐃𝐄𝐒𝐏𝐄𝐑𝐓𝐀𝐑 | 𝟏𝟗 𝐀𝐍𝐎𝐒 𝐀 𝐃𝐄𝐒𝐀𝐅𝐈𝐀𝐑 𝐎 𝐒𝐈𝐋𝐄̂𝐍𝐂𝐈𝐎
Há dias que não se anunciam. Chegam em silêncio, como quem testa a resistência de uma casa antes de entrar. O dia 26 de dezembro é assim. Para muitos, apenas mais uma data no calendário, um intervalo entre o Natal e o Ano Novo. Para outros, um ruído de fundo. Para a Rádio Despertar, é o dia em que a história insiste em bater à porta e perguntar: ainda estão aí?
Estamos. Sempre estivemos. Mesmo quando não nos queriam aqui.
Foi num dia como este, em 26 de dezembro de 2006, que a Rádio Despertar lançou oficialmente a sua primeira emissão. Não foi um acaso, nem um gesto administrativo. Foi o desfecho tardio de uma batalha política, jurídica e moral iniciada muito antes, rubricada em 1994, nos Acordos de Lusaka. Ali ficou escrito, com tinta e promessa, que a antiga Voz de Resistência do Galo Negro, a VORGAN - daria lugar a uma rádio comercial, privada, plural. O acordo foi assinado. A lei foi escrita. Mas, como tantas vezes acontece na nossa história, o papel cumpriu-se… e a vontade política tratou de não cumprir.
A Rádio Despertar nasce, portanto, não de uma concessão graciosa do sistema, mas de uma obrigação que o sistema nunca aceitou honrar. E talvez por isso ela seja, até hoje, profundamente incômoda.
Celebramos hoje, 26 de dezembro de 2025, 19 anos de emissão oficial. Dezanove anos de uma missão que nunca foi confortável, nunca foi consensual e nunca foi fácil. Dezanove anos a fazer jornalismo onde o jornalismo é visto como afronta. Onde perguntar é provocação. Onde insistir é crime moral. Onde existir já é, em si, um acto político.
A Rádio Despertar é distinta não por vaidade, mas por sobrevivência. Aqui, o jornalismo aprende a respirar debaixo de água. Não se pode fazer jornalismo sem fontes, ensinam-nos nos manuais. Pois bem: na Rádio Despertar, faz-se jornalismo apesar das fontes fechadas. Portas trancadas com PIN e PUK. Telefones que não tocam. Emails que nunca recebem resposta. Instituições públicas que fingem não ouvir. Empresas privadas que tremem só de ouvir o nome da rádio, com medo de perder contratos, privilégios ou o lugar à sombra do sistema.
O contraditório tornou-se um exercício de acrobacia intelectual. O cruzamento de informações, um acto de resistência. Cada notícia no ar é uma pequena vitória contra o silêncio imposto.
Músicos, humoristas, desportistas, professores universitários, analistas, comentadores…muitos sabem que é na Rádio Despertar que a sua voz chega, verdadeiramente, ao povo. Mas também sabem o preço. E o preço é alto. Conotação. Exclusão. Suspeita. Estar “do outro lado”.
Por isso fogem. Fogem como quem foge de um carimbo invisível. Porque neste país, ainda profundamente marcado pelo ADN do partido único, a liberdade continua a ser vista como disfarce. A independência, como farsa. A crítica, como traição. Até aqueles que se apresentam como defensores da “despartidarização” fogem da Despertar. Não por discordarem do seu conteúdo, mas por medo do rótulo.
A Rádio Despertar tornou-se, sem querer, a prova dos nove. Quem aceita vir, expõe-se. Quem recusa, revela-se. Uns criticam aqui para tentar entrar ali. Outros são avençados. Outros ainda fazem parte do teatro bem ensaiado do sistema: críticos permitidos, opositores decorativos, vozes autorizadas para vender a ilusão de um Estado aberto, democrático, tolerante. Todos eles evitam a Despertar como o diabo evita a cruz, porque passar por aqui pode significar perder privilégios.
Mas a Rádio Despertar não tem vergonha do seu passado. Nunca teve. A sua génese é clara, assumida, histórica. É fruto dos Acordos de Lusaka. É herdeira de uma voz de resistência. E é, hoje, uma rádio comercial privada que o regime nunca perdoou por existir.
Carregamos o ADN da exclusão. Basta trabalhar aqui para que a sociedade não hesite: “és do outro lado”. E “do outro lado”, neste país, significa ser cidadão e jornalista de segunda categoria. Sem os mesmos direitos. Sem o mesmo acesso. Sem a mesma proteção. Muitos recusam conceder entrevistas. Outros mantêm distância estratégica. Só aparecem quando a desgraça bate à porta, quando são expulsos do círculo do poder e precisam de um microfone que ainda aceite a verdade.
É neste cenário que o jornalista da Rádio Despertar se transforma em missionário. Cada noticiário que vai ao ar é uma conquista. Cada programa emitido é uma vitória contra a asfixia. Fazer rádio aqui é um acto de teimosia ética. É escolher a verdade mesmo quando ela não paga contas, não abre portas, não garante futuro.
E, paradoxalmente, é por isso que a Rádio Despertar se tornou a preferida em Luanda. Os números dizem-no. Os estudos confirmam-no. Na FM e na internet, somos líderes absolutos. Não porque somos perfeitos, mas porque ousamos ir onde outros não vão. Porque oferecemos ao povo o escape que mais ninguém tem coragem de oferecer.
A Despertar sempre foi refúgio dos perseguidos. Que o diga Fernando Garcia Miala, hoje Chefe dos Serviços de Inteligência, quando esteve em maus lençóis: foi aqui que encontrou espaço para denunciar, falar, respirar. A história tem destas ironias e a Rádio Despertar não as esquece.
Os nossos profissionais tornaram-se cobiçados. Muitos saíram. Não resistiram às pressões, às propostas milionárias, aos contratos dignos de futebolistas. Outros ficaram. E ficar, aqui, é muitas vezes escolher a dificuldade. É aceitar que as portas da sobrevivência económica e social se fechem. É ver familiares usados como instrumentos de chantagem. É carregar o estigma de quem não se vende.
Ainda assim, a mística permanece. A autenticidade resiste. A Rádio Despertar é uma escola. Uma fábrica improvável de milagres informativos. Fazer jornalismo com todas as portas fechadas. Com limitações de toda ordem. E, mesmo assim, entregar um produto final que honra aqueles que, em 1994, ousaram sonhar com esta casa de liberdade.
Como diria a sabedoria antiga, a verdade não pede licença. Ela impõe-se. E a Rádio Despertar veio para isso: despertar. Não aceita censura. Não aceita silêncio. Não aceita domesticação.
Dezanove anos depois, continua de pé. Ferida, sim. Pressionada, certamente. Mas inquebrantável. Porque há instituições que sobrevivem por conveniência, e outras que sobrevivem por convicção. A Rádio Despertar pertence à segunda categoria.
Que venham mais anos. A missão continua.
E continuará enquanto houver uma voz que recuse adormecer.
Horácio dos Reis | Diretor-Geral da Rádio Despertar