
22/01/2025
Vou para o Japão
Desde que essa ordem do império dos computadores portáteis e das redes invadiu nossas vidas, os desafios postos à privacidade têm mudado. Historicamente, de um cotidiano pudico e cheio de barreiras, em especial e violentamente para as mulheres, um mundo de escancaramento da vida vem se firmando e cá estamos nós, pesquisadores, professores, pais, pessoas, enfim, encantadas, porém alarmadas com seus problemas e consequências. Por um lado, assuntos que eram tabus passaram a circular e ganhar espaço em risadas, conversas, sendo debatidos com certa ou mais desenvoltura em alguns grupos, o que é muito bem-vindo, por exemplo, no que diz respeito a preconceitos. Pessoas em suas condições específicas, seja na infância, na menopausa, com síndromes várias, quando “aparecem”, encorajam, tornam-se “temas”, o que colabora para minar a falta de conhecimento sobre a pluralidade das condições de vida.
Mas a exposição da vida e das questões privadas das pessoas e a consequente pressão para que todos ingressem nessa dinâmica, causa uma série de problemas. Essa prática não só alimenta uma vontade crescente de se expor em busca de aceitação social e variadas oportunidades de relacionamento – amoroso, financeiro –, como consequentemente passa a condicionar as relações, inclusive com nós mesmos. Além da ansiedade criada e alimentada pela necessidade de aprovação sem fim das curtidas nas postagens nas redes sociais, esse escancaramento de si praticamente imposto leva à ampliação desmedida de “zonas de exposição”. Um dos exemplos cotidianos disso é o barulho crescente nos lugares sociais. Quem usa transporte público não sabe o que é fazer seu trajeto sem ouvir o som de uma música ou, principalmente, de um desses vídeos compartilhados nas redes. Apesar da lei que proíbe o uso de aparelhos sonoros nos meios de transporte, a plaquinha com essa informação, presente em todos os veículos, é absolutamente desprezada. A orientação é que se usem fones de ouvido. Não são todos que usam. E qual a diferença entre esse som e as conversas pesarosas ou animadas entre as pessoas? Às vezes nenhuma, considerando o volume das vozes, querendo que os outros ouçam o que antes era assunto só da dupla ou do grupinho. Aí é que está: os outros precisam saber. Há uma compulsão por se fazer notar, ouvir, conhecer. Já ouvi detalhes de comportamentos, de ambientes de trabalho, de relações familiares. Recentemente, num avião, ouvi sobre tudo isso de um grupo animadíssimo. O volume das quatro vozes era de palestrantes. De detalhes de viagens a travessuras picantes que envolviam uma calcinha roxa, todos nós passageiros ouvimos historietas e gracinhas nas longuíssimas quase duas horas de voo. Vários faziam expressões de incômodo de vez em quando. Também nessa férias, num passeio de trem, quatro animados jovens, dois casais, contavam para o vagão inteiro suas peripécias em viagens, estágios, faculdades. Ao lado, três amigas também falavam alto. Característica nossa? De jovens? Em parte, sim. Mas acho que em geral, simplesmente paramos de nos preocupar com nossas vidas privadas. Todos ouvem, todos falam, todos postam e tudo bem. Irritada com todos esses barulhos, soube com deleite que no Japão é considerado de má educação falar no transporte público. Que paraíso. Imediatamente pensei: vou para o Japão!
Na verdade, o problema não é a verborragia generalizada em alto volume, mas seu fundo, ou seja, a desconsideração em relação aos outros na imposição da própria vontade e falta de cuidado com a própria vida. Aqui está o fio. Se não nos reservamos, se não tivermos momentos de silêncio, temos imensa dificuldade de lidar com desafios da vida, com nossas emoções. Nós nos tornamos incapazes de perceber a nós mesmos, meditar sobre as circunstâncias. E isso é grave, na medida em que o estar só e pensar é uma capacidade sofisticada que dosa nossa participação no mundo, o que significa ponderar sobre nossas escolhas e ações. Sem isso, somos meros autômatos, prontos a repetir comandos sem nos darmos conta das consequências e dos problemas desse sequestro do que temos de mais valioso que é a capacidade de pensar.
O silêncio consigo foi sequestrado pela exaustão e pela necessidade de fazer barulho ao alheio, combinação perversa, da qual espertalhões têm tirado proveito, seja em programas de governo estapafúrdios e opressores, seja em joguinhos de apostas. E ainda reclamam da proibição do uso de celulares nas escolas. Mas este é assunto para outro texto.