05/06/2025
A carta 📬 Aquele ônibus com vista para o mar
Estou atravessando um momento difícil – por vezes duro –,interessante e belo. Nos altos e baixos do dia a dia, inclusive emocionais, o ponto incandescente é dar-me conta de quem sou, ou melhor: de quem eu sou? O que sempre me causou inquietação é a ideia de que a vida possa tornar-se uma negação contínua dos próprios desejos, uma decepção, algo que passa sem deixar rastro. No fundo, é o medo de não pertencer a ninguém. Questões como essa se intensificaram após a morte do meu pai por Covid, pois de um dia para o outro, não o vi mais. Será que nascemos para ser lançados no moedor da história? Toda a minha vida se rebela contra essa redução.
Para responder, olho para uma experiência que vivi e me parece descrever o caminho de autoconsciência ao qual somos chamados. Eu estava num ônibus, sentindo-me exausta – física e emocionalmente – e triste. O ônibus faz uma curva, levanto o olhar e vejo o mar. Como é bonito! E eu não o fiz! No mesmo instante, voltei a respirar: mas eu também não me faço sozinha! E todos esses passageiros estranhos e efêmeros não se fazem sozinhos! Mas então, se há alguém que me quer neste momento, nada está perdido. Fiquei muito feliz por me descobrir frágil. Algo aconteceu: vi o mar, não fiz nada. Mas foi como um fio de luz atravessando uma fenda, uma brisa leve.
De repente, percebi que, se eu não fizer esse caminho de conhecimento, o buraco afetivo continua sendo apenas um buraco, não se torna uma fenda. Se não descubro de que sou feita e que, para ser, preciso me apoiar em Outro que me faz, é impossível ter esperança. Os problemas não desaparecem magicamente, mas descubro que posso ver as coisas dentro do olhar de Quem me faz agora – um olhar que me tomou e me transforma por dentro, que me faz ver o mar porque ele existe, e não é apenas mar.
Francesca
(de Passos📌 mar-abr/2025)
📸 Marco M /Unsplash