10/09/2025
Assim como Renato Russo, a cantora Angela Ro Ro exorcizou sem medo a dor e a delícia da vida q***r
BRUNO GHETTI
Década de 1990. Boate Le Boy, na época o maior ponto de encontro carioca da comunidade LGBTQIA+ — muito antes de a sigla existir —, em Copacabana. Sentada diante de um piano, com um infalível copo de uísque ao alcance das mãos, Angela Ro Ro, morta nesta segunda-feira aos 75 anos, dizia, entre uma canção e outra: "Vocês sabem, sou a única cantora de MPB lé***ca do Brasil!"
Seguiam-se gargalhadas, assovios e aplausos de um público mais do que ciente do quanto a música popular brasileira sempre foi prodigiosa em grandes cantoras homossexuais. A fala ressaltava características da artista tão peculiares como sua voz possante —o autodeboche e o humor ferino.
Diferentemente das outras divas da MPB, evasivas quando questionadas sobre sua sexualidade, Angela sempre foi de uma desconcertante transparência a esse respeito. Desde que lançou o primeiro álbum, em 1979, deixava isso claro em tudo: sua figura, suas entrevistas, seus shows. Por décadas, os trechos no palco em que conversava com a plateia, relatando as dores e delícias de suas experiências amorosas, eram tão aguardados quanto seus grandes sucessos, como "Amor Meu Grande Amor" e "Tola Foi Você".
Ao menos até o fim dos anos 1990, também os excessos eram elementos do espetáculo — Ro Ro já aprontou um bocado de confusão depois de exagerar nos entorpecentes. Podia fazer shows irrepreensíveis, mas também perdia a linha.
Mas se jogar uísque na plateia ou abandonar shows pela metade podiam ser — legitimamente — vistos como gestos desrespeitosos de uma artista, em geral eram sobretudo compreendidos como partes inalienáveis da personalidade de uma mulher que se desnudava diante de seu público. E que não tinha medo de expor seus próprios demônios e nem de se entregar. Ao amor, ao ódio, ao álcool, ao prazer.
Os admiradores q***rs não costumavam se sentir afrontados. Entendiam que aquilo era uma forma de ser, um traço de autenticidade e transgressão. Que são qualidades que sempre cobram um preço, e Angela pagou caro. Problemas de saúde, a restrição profissional a certos nichos, os escândalos midiáticos. E havia ainda questões mais corriqueiras, comuns no dia a dia de homossexuais no Brasil — Angela dizia que foi agredida por policiais cinco vezes, por homofobia, e em uma delas teve a visão comprometida para sempre.
Seu conturbado romance com Z**i Possi, no começo dos nos 1980, terminou com agressões, delegacia e todos os ingredientes que faziam a felicidade da imprensa sensacionalista. Mas o entrevero nunca soou ao público q***r como uma simples ocorrência policial.
Independentemente do quanto Angela possa ter errado ali, o que entrou para o imaginário dos g**s e lé***cas foi algo menos factual, mais simbólico — a existência de um amor homossexual para além das boates e locais de pegação. A revelação pública de que duas grandes estrelas haviam se amado. E tido um fim de romance dramático, é bem verdade, mas saber da existência desse amor infeliz era melhor que nada. Até as aproximava dos fãs, porque humanizava as duas divas — e mostrava que a vida real de cada admirador não era lá tão diferente assim.
O estilo de vida que por anos fez tão mal à cantora também lhe foi dialeticamente benéfico. Sua total franqueza diante da entrega aos próprios instintos e desejos a tornava uma espécie de anti-heroína que aumentavam sua mitologia. Angela exorcizava, de certa forma, questões muito caras ao público q***r.
Em suas músicas, muita irreverência e amores proibidos — que, se em diversas ocasiões eram inespecíficas sobre um romance gay ou hétero, para bons entendedores não havia dúvida alguma. Fosse na inclusão de seu repertório de "Bárbara", de Chico Buarque e Ruy Guerra, ou "Cheirando a Amor", de sua própria autoria.
Ela contava e cantava histórias de amores intensos, desesperados, sofridos. Mesmo diante do fim do mundo — na canção "Nosso Amor ao Armagedon", o eu-lírico lésbico espera pela amante até após a Terra ser destruída, a qualquer momento, de qualquer maneira, mesmo "queimadinha de radioatividade".
O trágico e o cômico andavam juntos em sua poética, e talvez por isso sua obra falava com tanta força à sensibilidade da comunidade q***r, já historicamente acostumada a aproveitar ao máximo os momentos de prazer, diante da constante possibilidade da tragédia e do fim. Mas, sempre, com muito bom humor.
A entrega ao gozo e à autodestruição — desejo de vida e morte jorrando nas veias. Angela Ro Ro encarnou como nenhum outro artista brasileiro a essência de toda uma comunidade.
Foto: A cantora Angela Ro Ro em retrato de 1984 - Avani Stein/Folhapress.
FSP 08.09.2025