03/06/2024
Praia para o povo
Jairo Pitolé Sant’Ana
Me desculpem os fundamentalistas, mas definitivamente não concordo com a ideia de uma mão divina interferindo na natureza, gerando catástrofes como enchentes do Rio Grande do Sul, seca da Amazônia e incêndio no Pantanal. Principalmente, por estar supostamente zangado pela predominância de terreiros de candomblé ou pelo fato de um estado ter poucas igrejas. Concordo, sim, que a catástrofe é resultado da “boiada passando” e afrouxando cada vez mais as leis ambientais.
Sempre me lembro do caso cuiabano, onde existiram no perímetro urbano desta cidade mais de 20 córregos a desaguarem nos rios Coxipó e Cuiabá. Coloquei o verbo no passado, porque atualmente são literalmente esgotos a céu aberto. Não chegaram a esta situação por causa das fezes expelida pelos animais que um dia viveram no entorno de suas matas ciliares, mas por nós, humanos, e sem o devido tratamento.
Em muitas cidades deste país há um leito d’água transformado em esgoto. E, ainda, queimadas, desmatamentos, agrotóxicos, impermeabilidade do solo, aumento da temperatura, chuvas intensas e localizadas, etc.
Apesar disso e de alertas de especialistas e cientistas, não é pequeno o contingente dos defensores da “boiada passando”. A mais recente tentativa é a PEC 3/2022, conhecida como a PEC da Cancun brasileira, em discussão no Senado. Embora não proponha a privatização das praias de pindorama, abre espaço para que isso aconteça, aos transferi-la, de graça, a estados e municípios, e, sob pagamento, a foreiros, cessionários e ocupantes. O propósito é a construção de complexos turísticos no litoral.
Segundo o biólogo Ronaldo Cristofoletti, professor do Instituto do Mar, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na Baixada Santista, citado pelo site Congresso em Foco, as praias e os terrenos que margeiam o mar são áreas naturais de proteção, que necessitam ser cuidadas por conta de eventos extremos. Vai além: “o que está acontecendo no Rio Grande do Sul mostra como a força das águas pode destruir vidas, sociedades, culturas, economias, agricultura, pecuária, tudo”.
Além da previsão de futuras catástrofes, a medida, se aprovada, afetará a vida de mais de um milhão de pescadores artesanais credenciados pelo Registro Geral da Atividade Pesqueira e suas famílias (no mínimo, quatro milhões de pessoas), que perderão seu ganha-pão ou ficarão submetidos a grandes conglomerados em troca de baixos salários. Além de serem acrescentados à leva de um descomunal exército de “sem-praias”, que há de surgir por este Brasil afora.
O pobre litorâneo, como sempre, perderá uma de suas poucas opções de lazer. A não ser que pague para entrar, e, talvez, sem direito a levar seu isopor de cerveja e seu frango assado com farofa. Como nos cinemas de shoppings, terá de comprá-los em algum quiosque credenciado pelo novo proprietário. Será o fim dos farofeiros. E a classe média que se prepare para desembolsar mais um troco.
Publicado nesta segunda-feira, 3/6/24, em A Gazeta, de Cuiabá.