09/07/2025
*Zacimba Gaba — A Filha Guerreira de Matamba*
Nas tradições africanas e afrodiaspóricas, os Òrìṣàs e os Ninkisi não são apenas forças da natureza — são princípios vivos, que se encarnam em pessoas reais nos momentos decisivos da história. Uns dizem que Oyá dança nos ventos das tempestades; outros, que ela sopra coragem nas entranhas dos que ousam resistir. Entre os povos bantus da região de Angola e do antigo Reino do Congo, essa força ancestral também se manifesta na figura da Nkisi Matamba — divindade associada ao poder feminino, ao vento, à guerra, à estratégia e à dignidade.
É sob essa perspectiva sagrada que invocamos a memória de *Zacimba Gaba* — mulher negra, africana, guerreira e soberana. Sua história foi silenciada pelo projeto colonial que tentou apagar a memória da escravidão. Mas sua chama, como o raio de Oyá e o trovão de Matamba, atravessa os séculos e renasce como relâmpago de liberdade nas bocas que não se calam.
⚔️ Zacimba Gaba: Entre o Trono e a Senzala
Zacimba Gaba nasceu no século XVII, no Reino de Cabinda — território historicamente conectado ao Reino do Congo e às linhagens políticas e espirituais de Ndongo/Matamba, atual Angola. Ali floresciam tradições profundamente enraizadas no culto aos *Minkisi*, forças sagradas da natureza e dos ancestrais, que regem a ordem do mundo. Entre elas, destacava-se a Nkisi Matamba (Nzinga), símbolo do poder feminino guerreiro.
Zacimba era filha da aristocracia cabindense. Possivelmente descendente direta de chefes e chefesas locais, foi criada em um contexto de liderança política e espiritual. Quando os portugueses intensificaram os ataques e sequestros nas costas africanas, Zacimba organizou a resistência de seu povo contra os invasores — em um movimento que ressoava a bravura da célebre *Rainha Njinga Mbandi*, soberana do reino de Ndongo e Matamba, que desafiou o colonialismo luso com diplomacia, guerra e inteligência estratégica.
Após resistir por anos às investidas coloniais, Zacimba foi capturada junto com membros de sua comunidade e levada para o Brasil como parte do brutal tráfico atlântico de escravizados, uma das maiores tragédias humanas da história. Transportada como cativa, ela desembarcou na Capitania do Espírito Santo — um dos principais pontos de entrada de africanos escravizados na região sudeste da colônia portuguesa.
🩸 A Corte Cativa de José Trancoso
No Brasil, Zacimba foi comprada por *José Trancoso*, um fazendeiro português que possuía terras e engenhos de cana-de-açúcar nas margens do rio Cricaré, onde hoje está localizado o município de São Mateus. Mesmo em condição de escravizada, Zacimba conservava a altivez e dignidade que denunciavam sua ancestralidade nobre. Sua postura causava estranheza aos senhores e respeito entre os cativos africanos, que a reconheciam como líder espiritual e política.
Trancoso, intrigado com o respeito que ela inspirava, começou a desconfiar de sua origem real. A história oral registra que ela foi interrogada, agredida e violentada até confessar sua ascendência real. Quando o senhor descobriu que possuía uma "princesa" em cativeiro, usou essa informação como forma de controle simbólico e psicológico — mantendo-a sob vigilância na Casa Grande, enquanto seus súditos eram açoitados nas lavouras.
O que Trancoso não sabia era que, enquanto ele acreditava ter domado uma rainha, *Zacimba tramava uma revolução* silenciosa.
☠️ O “Pó de Amassar Sinhô”
Entre os muitos saberes africanos transplantados para o Brasil — apesar da violência da travessia — estavam também os conhecimentos de cura e de defesa mágica. Dentre eles, havia fórmulas de venenos discretos, extraídos de plantas e animais como serpentes. Um desses compostos, feito com a cabeça da *jararaca*, era conhecido entre os cativos como *"pó de amassar sinhô"* — uma substância letal usada para eliminar feitores cruéis e senhores violentos, sem deixar rastros evidentes.
Zacimba utilizou esse saber ancestral para envenenar José Trancoso lentamente. A cada dose, ele adoecia mais, sem suspeitar da origem do mal. Quando o corpo do opressor tombou, ainda quente, *Zacimba ordenou o levante*: os portões da senzala foram arrombados, a Casa Grande invadida, e os feitores assassinados. Registra-se que *ela poupou a família de Trancoso*, talvez por estratégia política, talvez por compaixão — mas os instrumentos da opressão foram todos destruídos.
🛖 O Quilombo de Itaúnas: Soberania Reconstruída
Com sua liderança consolidada, Zacimba conduziu o grupo de libertos pelas matas capixabas até fundar um *quilombo na região de Itaúnas*, no norte do Espírito Santo. O local foi escolhido estrategicamente: floresta densa, proximidade do rio, distância dos centros coloniais. Ali, os sobreviventes *reconstruíram uma África possível*, com estruturas políticas autônomas, rituais religiosos preservados, língua, música e códigos de conduta.
O *Quilombo de Zacimba Gaba* tornou-se não apenas um refúgio, mas uma *base de resistência ativa* contra o sistema escravista. Seus guerreiros atacavam portos, libertavam cativos recém-chegados, sabotavam engenhos e queimavam lavouras. No litoral de São Mateus, seus feitos viraram lenda — ela era chamada de “a Nkisi viva da guerra” por muitos africanos no Brasil.
⚓ Último Ato: A Queda em Combate
Zacimba passou seus últimos anos liderando emboscadas contra senhores de escravos e libertando irmãos de etnia recém-chegados ao Brasil. Segundo relatos da tradição oral preservados por griôs, descendentes quilombolas e estudiosos da resistência negra, ela morreu em combate — durante uma operação de resgate num navio negreiro português.
*Tombou com espada em punho, como Oyá em sua fúria e como Matamba em seu clamor.*
🌬️ Memória e Vento: A Força que Não se Apaga
O racismo estrutural no Brasil tentou — e ainda tenta — silenciar histórias como a de Zacimba. Livros de história ignoraram sua existência, museus apagaram seu rosto, e escolas nunca ensinaram seu nome. Mas ela vive. *Vive nas rodas de tambor, nos quilombos renascidos, nos cânticos que evocam Oyá, Nzinga, Matamba e todos os nomes da liberdade.*
Como diz o provérbio yorùbá:
*"Ẹni tí kò mọ’ìtàn, á padà ṣe èṣìn."*
_Aquele que não conhece sua história, repete sua escravidão._
A mulher negra como herdeira de Zacimba: quilombo como casa, resistência como alma
Zacimba Gaba não morreu.
Ela continua viva na luta diária da mulher negra brasileira, que como ela, resiste.
A senzala mudou de forma — agora se disfarça de subemprego, salário menor, solidão afetiva, racismo estético e institucional.
A Casa Grande mudou de lugar — agora está nos altos cargos onde ela não entra, nas universidades onde ainda é exceção, nas maternidades onde seu corpo ainda é alvo de negligência.
Como Zacimba, muitas mulheres negras carregam coroas invisíveis.
São chefes de família, mães de seus irmãos, líderes de suas comunidades.
Muitas vivem em casas humildes, mas fazem delas seus quilombos: espaços de proteção, cuidado, ancestralidade, e acima de tudo — liberdade.
Cada panela que ferve no fogão é um tambor que ressoa a resistência de Matamba.
Cada conselho dado ao filho é um código de libertação.
Cada negativa diante da opressão é um punhal que perfura o colonialismo ainda vivo nas estruturas sociais.
Zacimba foi estuprada, agredida, humilhada.
Hoje, quantas mulheres negras ainda têm seus corpos violados e suas vozes silenciadas?
Zacimba arquitetou uma revolta, envenenou o opressor, libertou seu povo.
Hoje, quantas mulheres negras arquitetam suas vitórias em silêncio, armadas com conhecimento, espiritualidade, militância e amor próprio?
Zacimba fundou um quilombo.
Hoje, cada mulher negra que resiste está fundando o seu.
Sua casa, mesmo sem cerca de proteção, é um espaço sagrado de resistência cultural e política.
Sua trajetória, mesmo anônima, é parte de uma linhagem que nunca foi submissa — apenas sequestrada.
E como Zacimba morreu invadindo um navio negreiro, talvez a mulher negra de hoje morra todos os dias:
Ao entrar no ônibus sendo seguida pelo olhar do segurança,
Ao tentar um emprego e ouvir que “não tem o perfil”,
Ao ser mais uma vítima do feminicídio que ceifa tantas pretas todos os anos,
Ao ser mãe de jovens negros que são os mais assassinados do país.
Mas como Zacimba, ela renasce.
A cada batida de tambor, a cada dança de Oyá, a cada reza à Matamba, a cada criança negra protegida, ela renasce.
Porque Zacimba é mais que um nome — é uma chama.
E essa chama, nenhum sistema consegue apagar.
*“Tata Nzinga Matamba, makasi na nge!”*
_Mãe Nzinga de Matamba, força esteja contigo!_
*"Èpà bàbá Àjàká, ará Ìrà! Ẹ kú ẹ̀bọra!"*
_Saudações à grande Àjàká, senhora dos ventos de Ìrà! Que o Espírito Ancestral seja saudado!_
🖤 Àbórú, Àbòyè, Àbọ́ṣíṣẹ!
🕊 Àṣẹ irẹ!
🙏 Òyá Ìgbàlè bùkún fún yín!
💧 Beba sua água
🧼 Lave suas guias
⚪️ Vista seu branco
✊ E venha para a luta!
✏️
📚 "Zacimba Gaba: Princesa, Escrava e Guerreira"* – Maciel de Aguiar
📚 Relatos orais de comunidades quilombolas do Espírito Santo
📚 Pesquisas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
📚 Estudos sobre os reinos do Congo, Ndongo e Matamba
📚 Textos sobre espiritualidade bantu-kôngo e o culto aos Minkisi
📚 Estudos comparativos entre Oyá (yorùbá) e Matamba/Nzinga (kôngo) na simbologia da resistência feminina
📚 Arquivos e trabalhos de historiadores da resistência negra no Brasil