31/07/2025
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE MUCURI
(uma jornada pelas raízes de um povo)
Por Gaetano Battaglia
"A verdadeira riqueza de Mucuri está nas histórias que o vento ainda conta entre o mar e a floresta."
1. Introdução
Quando cheguei em Mucuri, vindo de tão longe — da calorosa e vibrante cidade de Nápoles, na Itália — eu não imaginava que encontraria aqui um novo lar para minha alma.
Já se passaram quase vinte anos desde aquele primeiro dia em que pisei nesta terra abençoada da Bahia. Com o tempo, percebi que Mucuri não é apenas um lugar: é um sentimento.
Em 2025, escrevo este livro movido por uma profunda gratidão e por um amor sincero por esta cidade que me acolheu como filho.
Este livro não é apenas uma homenagem à história antiga de Mucuri — dos primeiros povos indígenas, dos colonos, dos pescadores, dos trabalhadores incansáveis. Este livro é também um abraço àqueles que, como eu, vieram de fora, mas escolheram viver aqui, construir aqui, amar aqui.
Mucuri pertence a todos que decidiram fazer desta terra seu lar:
Aos que nasceram em suas praias e respiraram desde pequenos o cheiro do mar e do cacau;
Aos descendentes dos povos originários, herdeiros da coragem e da sabedoria da floresta;
Aos moradores que chegaram mais tarde, vindos de outros cantos do Brasil ou do mundo, e que agora fazem parte dessa grande família chamada Mucuri.
Cada pessoa que pisa e escolhe permanecer nesta terra carrega uma responsabilidade e um privilégio: o de honrar seu passado e construir seu futuro.
Assim como fiz no passado com a Turma Solidária de Mucuri — onde, por muitos anos, na nossa Quarta-feira Solidária, entregávamos pizzas, refrigerantes e momentos de alegria para mais de 100 crianças carentes a cada semana — continuo acreditando que pequenas ações podem transformar uma cidade.
Acredito que cada gesto de carinho, cada pedaço de tempo dedicado ao próximo, cada semente de solidariedade plantada, faz florescer uma comunidade mais forte, mais unida e mais cheia de esperança.
Este livro é uma semente. Uma história contada com o coração. Uma memória viva para que as gerações futuras saibam que Mucuri tem raízes profundas, tem uma alma vibrante, e que todos nós — nascidos aqui ou adotados por esta terra — temos a missão de cuidar dela com orgulho e amor.
Bem-vindos à história de Mucuri. Bem-vindos à nossa história.
(Gaetano Battaglia)
2. O Começo de Tudo: Antes de Existir Mucuri
Muito antes de qualquer mapa, esta terra já era viva.
Aqui onde hoje chamamos de Mucuri, habitavam povos antigos: os Pataxó, os Abatires e os temidos Aimoré — conhecidos também como Botocudos pelos portugueses.
Eles não conheciam cercas, nem paredes. Para eles, a floresta, os rios, as praias e as montanhas eram parte da mesma grande família.
Viviam em harmonia com a natureza. Pescavam nos rios transparentes, caçavam com arcos e flechas entre as árvores altas, colhiam frutos dourados no mato, plantavam mandioca e milho em pequenas clareiras abertas pelo fogo sagrado.
Mas o que fazia o coração desses povos bater mais forte era a ligação espiritual com tudo o que viviam. Para eles, cada árvore tinha uma alma. Cada animal era um irmão. Cada estrela era um sinal dos antigos.
"Mucuri não é um destino. É uma escolha de alma."
Os Aimoré, valentes como o trovão, tinham um costume sagrado: acreditavam que ao comer a carne de um inimigo bravo em batalha, sua força e coragem passavam para quem o vencia. Um ritual de respeito e bravura, que os portugueses, sem entender, chamavam de "selvageria".
Para os Aimoré, era algo profundo: honrar a vida e a força daquele que lutou bem.
Os indígenas contavam histórias ao redor do fogo: histórias de árvores mágicas, de rios que cantavam, de seres que moravam no vento. Essas histórias nunca foram escritas. Eram passadas de boca em boca, de avô para neto, como sementes espalhadas pelo tempo.
O nome Mucuri nasceu daí: de uma árvore antiga, abundante às margens do grande rio, e da memória dos povos Mokuriñ, os primeiros a sonhar essas terras.
3. A Chegada dos Estrangeiros: Os Ventos Mudam
No ano de 1500, caravelas portuguesas chegaram ao Brasil, primeiro em Porto Seguro. Mas logo os olhos cobiçosos dos europeus se voltaram para o sul, onde a beleza da costa, o cheiro das matas e a fartura dos rios prometiam riquezas infinitas.
As terras de Mucuri faziam parte da Capitania de Porto Seguro. Mas durante muito tempo, os europeus evitavam penetrar naquelas matas, temendo os chamados "índios bravos".
No fim do século 16 e começo do 17, aventureiros e bandeirantes — como Martim Carvalho e Antônio da Silva Guimarães — arriscaram-se no interior. Procuravam ouro e pedras preciosas, mas encontraram apenas resistência e densas florestas.
Tentaram então explorar o pau-brasil e criar pequenos engenhos de açúcar, mas cada passo adentro da floresta era um desafio.
"Onde o Rio encontra o Mar, a História encontra o Futuro."
4. A Revolta Indígena: Um Grito de Liberdade
Depois de tantas agressões, as tribos de Mucuri decidiram se unir.
Aimoré, Abatires, Pataxó — povos que antes eram independentes — deram as mãos. E uniram-se também aos Tupinambá e Tamoios, seus irmãos litorâneos, para resistir.
Em 1664, na Sexta-feira Santa, enquanto os colonos rezavam nas igrejas, os indígenas atacaram com fúria. Santa Cruz, Santo Amaro e outros postos coloniais foram incendiados e destruídos.
Por um breve instante, as florestas voltaram a ser livres.
Mas a epidemia de varíola, trazida pelos europeus, espalhou-se rapidamente, esvaziando as aldeias indígenas e estancando a resistência.
5. O Surgimento da Vila: São José de Porto Alegre
Entre 1720 e 1730, pequenos grupos de imigrantes alemães e suíços chegaram às margens do Rio Mucuri. Fundaram um povoado agrícola, dedicado ao cultivo do café em terras arrancadas da mata fechada.
Chamaram o novo assentamento de Porto Alegre, pela beleza do porto natural na foz do rio. Mas para os nativos e antigos moradores, esta terra sempre foi — e sempre será — Mucuri.
Em 1768, foi erguida a pequena Capela de São José, construída em mutirão por colonos e indígenas.
E em 10 de outubro de 1769, a Carta Régia formalizou a criação da Freguesia de São José de Porto Alegre, reconhecida oficialmente no dia 15 de outubro de 1779 pelo ouvidor José Xavier de Machado, enviado da Coroa portuguesa.
Assim nascia, em meio à selva e ao litoral selvagem, o embrião da cidade de Mucuri.
6. O Século 19: O Sonho do Progresso e as Dores da Terra
Com o passar dos anos, o Brasil conquistou sua independência, e Mucuri passou a integrar as fronteiras do novo Império.
A resistência indígena persistia: os últimos núcleos Botocudo ainda vagavam pelas matas, livres e altivos.
Mas em 1852, o político mineiro Teófilo Benedito Ottoni fundou a Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri.
Sua visão era clara: integrar o interior de Minas ao Atlântico.
Inaugurou em 7 de setembro de 1853 uma estrada carroçável de 240 quilômetros, ligando Filadélfia (hoje Teófilo Otoni) ao litoral. No Rio Mucuri, vapores percorriam cerca de 170 quilômetros até o porto.
Essa infraestrutura permitiu o escoamento de madeira preciosa, cacau e produtos agrícolas.
Mas o avanço civilizador teve seu preço: o governo imperial, em 1808-1810, havia decretado oficialmente a “guerra aos Botocudos”, permitindo a eliminação dos indígenas considerados obstáculos à colonização.
Assim, a presença indígena foi sendo reduzida a pequenos aldeamentos ou tragicamente extinta nas selvas profundas.
7. Zacimba Gaba: A Princesa Guerreira do Riacho Doce
Muito antes de Mucuri se tornar município e destino turístico, uma história de resistência silenciosa se escrevia nas areias da Praia do Riacho Doce, onde as falésias guardam o eco de uma mulher inesquecível: Zacimba Gaba.
Zacimba não era apenas uma escrava africana. Era uma princesa do reino de Cabinda, na Angola, capturada pelas tropas coloniais e vendida como mercadoria no porto de São Mateus, no Espírito Santo, no final do século XVII.
Com apenas 20 anos, foi comprada por um fazendeiro português cruel, que a submeteu a castigos, abusos e humilhações. Mas dentro dela ardia o espírito de uma líder. Durante anos, resistiu. E planejou. Com paciência, coragem e sabedoria, elaborou um plano para libertar seu povo.
Em silêncio, usando veneno extraído de cobras venenosas do Vale do Mucuri, Zacimba executou o seu plano. Quando o senhor caiu, os escravos tomaram a fazenda, libertaram os cativos e fundaram um quilombo nas terras onde hoje se localiza o Riacho Doce.
Ali, Zacimba viveu como guerreira. Atacava navios negreiros à noite, libertava escravos recém-chegados e liderava seu povo com firmeza. Lutou até o fim. Morreu em 1709, com 39 anos, durante uma invasão em um navio negreiro no rio Cricaré.
“Zacimba não pertence ao passado. Ela vive no vento que sopra do mar de Riacho Doce.”
8. Mucuri Indígena: Terras de Resistência
O nome Mucuri vem da língua tupi: “mukury”, referindo-se à árvore do bacuri, que abundava nas margens dos rios.
Os primeiros habitantes foram os valentes Botocudos, povos indígenas nômades, caçadores e coletores. Viviam em harmonia com a floresta, pescando em águas límpidas, caçando com arcos e flechas, e venerando os espíritos das árvores, dos animais e das estrelas.
Com o tempo, chegaram imigrantes europeus – alemães, suíços e italianos. Eles cultivaram café, pescaram, plantaram raízes nesta terra de promessas. Suas famílias misturaram-se aos nativos e formaram a diversidade que hoje pulsa em cada canto de Mucuri.
Mucuri ocupa uma posição estratégica: é o município mais ao sul da Bahia, fazendo fronteira com Espírito Santo e Minas Gerais. Seu litoral se estende por 45 quilômetros, cortado em duas partes pelo grande Rio Mucuri.
No início do século XIX, após séculos de invasões e violência, diversos grupos indígenas buscaram abrigo na região do Vale do Mucuri: Maxakalí, Malalí, Puri, Monoxó, Botocudo, Aimoré, Makoní, Goakines, entre outros.
Em 1808, a Coroa portuguesa emitiu Cartas Régias que autorizavam a "Guerra Justa" contra os Botocudos, permitindo que fossem mortos sob o pretexto de proteger as frentes colonizadoras.
Teófilo Benedito Ottoni fundou em 1847 a Companhia de Colonização do Mucuri e negociava com líderes indígenas como Capitão Giporok, Capitão Poton, Capitão Felipe e Capitão Pojixá. Mas muitos desses encontros terminavam em emboscadas, massacres ou deportações forçadas.
Com o fracasso financeiro da Companhia por volta de 1861, fazendeiros iniciaram operações sistemáticas de caça e extermínio de indígenas remanescentes. Crianças indígenas eram vendidas como criadas para famílias alemãs e portuguesas.
9. Dos Italianos à Cidade Moderna
Famílias italianas como os Gazzinelli marcaram o início da formação da cidade moderna:
Marieta Gazzinelli, prefeita entre 1983 e 1988, trouxe obras como o cais do porto, escolas e a rodoviária de Itabatã.
Ettore Gazzinelli, médico e primeiro prefeito, ajudou a organizar os passos administrativos do município.
Teófilo Ottoni, fundador da Companhia do Mucuri, era descendente de italianos genoveses.
Hoje, outro italiano se une a essa história: Gaetano Battaglia, chef napolitano, criador da Turma Solidária de Mucuri e da pizzaria Bella Napoli.
Famílias como Borges, Koch e Ribeiro também ajudam a manter viva a herança europeia da cidade.
No final do século 19, além do comércio de madeira, o cacau despontava como cultura importante. Em 1931, o nome Mucuri foi oficialmente retomado como nome do município, honrando suas raízes indígenas.
10. O Século 20: Tempos de Esperança, Tempos de Mudança
O cacau dominou a economia até os anos 1980, quando a praga vassoura-de-bruxa devastou plantações. Mucuri então se reinventou com a produção de eucalipto e a instalação da fábrica de celulose em Itabatã, uma das maiores da América Latina.
11. As Praias Douradas de Mucuri: Tesouros Escondidos
Mucuri possui 18 praias encantadoras ao longo de 45 km de litoral. Entre elas:
Praia da Barra – palco principal do carnaval.
Praia do Gesuel – refúgio na divisa com o Espírito Santo.
Espelho d’Água – com piscinas naturais.
Costa Dourada – com falésias e mar cristalino.
Praia dos Coqueiros – sombra e tranquilidade.
Praia do Sossego – joia escondida da paz natural.
12. Você Sabia?
O Rio Mucuri nasce na Serra dos Aimorés, Minas Gerais.
“Mucuri” vem da árvore nativa Mokuriñ.
A festa de São José, padroeiro da cidade, é celebrada todo 19 de março.
Mucuri faz parte da Costa das Baleias, região ecológica rica e preservada.
Mucuri tem mais de 1.200 comércios ativos, 185 indústrias e o maior PIB per capita do extremo sul baiano.
13. Darwin, Abrolhos e o Segredo Natural de Mucuri
Em março de 1832, um jovem inglês de 22 anos desembarcou na costa da Bahia: Charles Darwin Ele estava a bordo do navio HMS Beagle, em uma expedição científica que mudaria o mundo ao formular a teoria da evolução das espécies.
Registrou a riqueza da vida marinha e das formações rochosas da região, encantando-se com a biodiversidade que hoje também banha a costa de Mucuri.
Darwin navegou próximo ao litoral de Mucuri, parte do mesmo ecossistema que estudou nas Ilhas dos Abrolhos, ricas em biodiversidade marinha.
“Mucuri, terra onde até os olhos atentos de Darwin avistaram maravilhas que ainda hoje sussurram aos que sabem escutar o vento e o mar.”
Conclusão.
Mucuri é muito mais do que ruas, praias e rios. É uma memória viva que respira em cada canto.
Ser mucuriense é carregar uma história de coragem, resistência e amor. É saber que cada novo dia é uma oportunidade de honrar o passado e construir o futuro.
"A história de Mucuri é como o rio que nunca para: muda o caminho, mas segue sempre em frente."
"Aqui, onde o sol beija a terra e o vento conta segredos, nasceram homens e mulheres que carregam no sangue a força dos primeiros sonhos."
FIM (2025)
(Gaetano Battaglia)