15/11/2025
Entre o vale e a estrada do café: a antiga Fazenda Recreio na antiga Estrada Rio-Bahia, em Bemposta, Três Rios (RJ).
Situação e ambiência
A Fazenda Recreio está implantada em um vale do médio Vale do Paraíba fluminense, às margens da antiga Estrada Rio-Bahia, no trecho entre Areal e o distrito de Bemposta, no município de Três Rios. Cerca de 6 km da antiga rodovia cruzam o interior da propriedade, evidenciando o papel estratégico da fazenda como ponto de passagem e de escoamento da produção cafeeira em direção ao Rio de Janeiro.
A casa-sede, com dois pavimentos e 42 cômodos, organiza-se junto à curva da estrada, aproveitando o desnível natural do morro. Ao redor do terreiro de café, disposto em declive e no centro do conjunto, formou-se o chamado quadrilátero funcional, que articula casa-grande, senzalas, engenho e paiol. A entrada principal da sede se abre para um acesso em declive, protegido por portão de ferro, que desce até a estrada.
A face lateral esquerda da casa-sede se volta para o terreiro e para o conjunto de anexos: à direita do terreiro está a antiga senzala adaptada, à época do relatório, para indústria de andaimes; à esquerda, uma ala de senzala restaurada; e, no nível inferior, quase paralelos à estrada, o engenho e o paiol, fechando o quadrilátero. Na outra margem da antiga Rio-Bahia corre um curso d’água sinuoso acompanhando as encostas de um morro coberto por mata nativa, compondo uma ambiência em que a paisagem natural se integra ao desenho produtivo da antiga fazenda de café.
Descrição arquitetônica
A casa-sede é uma construção oitocentista de dois pavimentos que, em planta, define um bloco em forma de E, típico das grandes casas rurais de café. A arquitetura é marcadamente neoclássica, com fachada principal simétrica e bem ordenada por linhas de força: cunhais destacados, cimalha, frisos e cercaduras de vãos, sob um telhado de cumeeira elevada coberto por telhas capa e canal.
Os beirais possuem cimalha de madeira e, no anexo, cachorros aparentes. As senzalas também utilizam cachorros como arremate, enquanto engenho e paiol recebem acabamento mais elaborado, com forro e lambrequins de madeira, o que confere certa sofisticação a edif**ações produtivas normalmente mais rústicas. As esquadrias apresentam v***as e sobrev***as retas: portas externas almofadadas, portas internas de madeira com bandeiras, e janelas com almofadas internas protegidas externamente por guilhotinas envidraçadas.
Destacam-se elementos decorativos de exceção, como o desenho refinado do lambrequim restaurado do engenho/paiol, associado a mãos-francesas em forma de voluta, e uma barra pintada com motivo em “grega” ao longo da cimalha da sede. Há também um interessante recurso tecnológico de época: uma campainha no térreo acionada por sistema de ar comprimido que faz soar a sineta do relógio de madeira instalado na sala de jantar, evidenciando o caráter senhorial e o desejo de modernidade dos proprietários.
À época do relatório (2008), toda a casa-sede encontrava-se em processo de restauro orientado pelas cartas patrimoniais, com especial cuidado em preservar a volumetria, o telhado e o caráter neoclássico rural da edif**ação. Nas intervenções, utilizava-se madeira nas partes estruturais e de acabamento – sistema de pau-a-pique das paredes de vedação, estrutura do telhado, caixilharia de portas e janelas, lambrequins, ornatos de fachada, entablamentos dos forros “saia e blusa”, pisos de tábua corrida e entalhes da escada. O uso de materiais modernos era restrito à substituição de partes irrecuperáveis do pau-a-pique, recalçadas com tijolos e argamassa à base de cal, sempre que não houvesse pintura decorativa a preservar.
Detalhamento do estado de conservação da fazenda em 2008
Em 2008, a Fazenda Recreio passava por um processo de restauro que já se estendia por cerca de oito anos. No engenho, constatou-se um recalque de aproximadamente 38 cm na fundação, provocado pela biodeterioração de peças de madeira expostas à umidade ascendente e descendente em um dos pontos de apoio da cobertura, problema agravado por telhado com falhas e telhas faltantes. O recalque foi reduzido para 22 cm por meio de elevação com macaco hidráulico, estabilizando o edifício.
As paredes de vedação de todo o conjunto – casa-sede, senzalas, engenho e demais anexos – haviam passado por tratamento de descupinização, seguido de reintegração das partes faltantes de emboço e reboco, com cal virgem como componente principal da argamassa. Nas áreas em que o pau-a-pique estava destruído ou já havia sido substituído por material convencional, a recomposição empregou tijolos, mantendo a leitura volumétrica e os acabamentos originais sempre que possível.
O restauro seguiu uma sequência: inicialmente a cobertura do engenho, que apresentava o recalque; em seguida a área de serviço da casa-sede, convertida em espaços contemporâneos de estar, dormir, serviços e lazer, mas com manutenção da cobertura original; depois a reconstrução de uma ala da senzala, destinada a abrigar uma fábrica de andaimes; e, posteriormente, a recuperação da ala maior da senzala. A madeira estrutural – cunhais, frechais, madres, esquadrias e engradamentos – encontrava-se em bom estado após descupinização e substituição pontual de peças deterioradas, ora com enxertos (“bacalhaus”), ora com peças novas de mesma dimensão.
Para evitar novos problemas de umidade, utilizou-se impermeabilização com durafoil na interface entre alvenarias e elementos de madeira, reduzindo a possibilidade de umidade descendente. Naquele momento, o relatório registrava que não havia sinais signif**ativos de danos estruturais, justamente porque o restauro estava em curso, com atenção tanto à estabilidade do conjunto quanto à preservação de sua autenticidade formal.
Histórico – síntese ampliada
A Fazenda Recreio é uma propriedade rural oitocentista instalada no contexto da expansão da cafeicultura no Vale do Paraíba fluminense, região que se consolidou, entre meados do século XIX e o início do XX, como um dos principais polos produtores de café do Império e da Primeira República. A construção da casa-sede data do século XIX, momento em que o traçado da antiga Estrada Rio-Bahia reforçava as conexões entre o interior produtor e o porto do Rio de Janeiro, facilitando o escoamento da produção e a circulação de pessoas e mercadorias.
O conjunto arquitetônico da Recreio, com casa-grande de dois pavimentos sobre quadrilátero funcional composto por terreiro de café, senzalas, engenho e paiol, exprime a organização espacial típica das grandes fazendas de café escravistas do Vale do Paraíba: a residência senhorial em posição de comando, articulada diretamente às estruturas de beneficiamento e aos alojamentos da mão de obra cativa, concentrando vida doméstica, administração, produção e controle. Essa configuração pode ser observada tanto na descrição técnica do relatório quanto em estudos de geografia histórica e de história da arte, que ressaltam a implantação da casa-grande no topo de uma pequena colina, a salvo das inundações, tal como aparece em uma pintura a óleo realizada em 1886 pelo pintor alemão Johann Georg Grimm, hoje amplamente reproduzida em trabalhos acadêmicos sobre o ciclo do café.
No início do século XX, a fazenda acompanhou as transformações econômicas e sociais da região. Em 1938, a casa-sede foi reformada por seu então proprietário, o empresário Arnaldo Guinle, figura central da elite econômica carioca ligada a empreendimentos de infraestrutura e energia. A intervenção de Guinle atualizou o conforto e o padrão de acabamento da residência, sem descaracterizar o conjunto rural, o que explica a presença de soluções técnicas relativamente sofisticadas, como o sistema de campainha por ar comprimido integrando a circulação de serviço e a sala de jantar.
Com a derrocada do café na primeira metade do século XX, a Fazenda Recreio, como tantas outras propriedades do Vale do Paraíba, reorientou sua base produtiva para a pecuária leiteira. De acordo com a fonte histórica utilizada pelo relatório, na década de 2000 a fazenda mantinha cerca de 1.500 cabeças de gado distribuídas em aproximadamente 400 alqueires de terras, contando ainda com uma pequena “vila rural” interna composta por 65 casas de empregados e oito estábulos, o que demonstra a continuidade da propriedade como unidade produtiva relevante no município de Três Rios.
No início do século XXI, quando o inventário do INEPAC foi realizado, a Fazenda Recreio permanecia sob propriedade particular, com uso residencial na sede e uso industrial (fábrica de andaimes) adaptado em parte das antigas senzalas, mantendo viva a vocação produtiva do lugar, embora com novos signif**ados. Apesar de não possuir proteção legal efetiva, o relatório indicava a proposta de tombamento, reconhecendo a fazenda como testemunho material da economia cafeeira, das transformações pós-café e da permanência de paisagens rurais históricas no Vale do Paraíba fluminense.
Créditos
Conteúdo histórico e técnico baseado no Relatório INEPAC (Inventário das Fazendas do Vale do Paraíba Fluminense) entre 2007 e 2010, ficha da Fazenda Recreio, Antiga Estrada Rio-Bahia – Bemposta, Três Rios, Rio de Janeiro.
Informações atualizadas sobre a situação atual da Fazenda Recreio em Três Rios (Bemposta, RJ)
Após 2008, a Fazenda Recreio continua sendo objeto de interesse acadêmico e iconográfico, sobretudo por causa da tela “Fazenda do Recreio em Bemposta”, pintada em 1886 por Johann Georg Grimm, que é reproduzida e comentada em estudos recentes sobre geografia histórica do café e sobre o movimento abolicionista no Brasil. Esses trabalhos destacam a implantação da casa-grande no alto de uma elevação e confirmam a localização da fazenda na freguesia de Bemposta, reforçando sua importância como exemplo de fazenda cafeeira do Vale do Paraíba.
Em redes sociais, a Fazenda Recreio aparece em grupos e páginas dedicados a fazendas históricas e ao patrimônio do Vale do Paraíba, com fotografias atuais identif**adas como “Fazenda Recreio, Bemposta, RJ, Brasil”, o que indica que o conjunto permanece de pé e visualmente preservado, ao menos em sua volumetria principal. Esses registros mostram a propriedade inserida no mesmo contexto paisagístico de vale, próximo à antiga estrada e às encostas verdes que caracterizam a região.
Nos últimos anos, a fazenda também passou a ser usada como espaço para eventos técnicos ligados ao campo. Publicações de perfis vinculados ao Sindicato Rural de Paraíba do Sul e a programas de assistência técnica e gerencial ao produtor rural (ATEG) registram a realização de diversas edições do “Dia de Campo ATEG – Café na Fazenda Recreio”, em Bemposta, Três Rios. As postagens mencionam a presença de dezenas de produtores e atividades ligadas à cafeicultura e ao turismo rural, sugerindo que a fazenda, além de unidade produtiva, atua como vitrine de boas práticas no meio rural e como cenário para ações de capacitação e valorização do patrimônio.
Em síntese, as informações mais recentes sugerem que a Fazenda Recreio continua em uso privado, mantendo sua função agropecuária e servindo como palco para ações de extensão rural e cursos na área de café e turismo rural. O conjunto permanece reconhecido em estudos históricos e em comunidades virtuais dedicadas às fazendas de café, reforçando sua relevância como patrimônio rural do Vale do Paraíba fluminense.