
30/04/2025
*"O que me prende aqui?"*
Moro há anos no mesmo bairro. Não na mesma casa, é verdade, mas os meus passos sabem o caminho — todo dia passo pelo lugar onde me fiz homem. E, se posso dizer com a boca cheia, digo: sou bem-aventurado. Tenho o raro privilégio de acessar os arquivos sagrados da minha memória, e cada esquina é uma gaveta que se abre com cheiro de infância e som de risada.
Ali, eu e meus amigos sentávamos pra conversar sobre tudo e nada. Ríamos de bobeira, brincávamos de pega-pega até o sol se esconder, como se o mundo coubesse em uma rua de asfalto gasto. Na outra quadra, vejo a casa onde morei. Ela ainda está de pé, mas não é mais a mesma. A pintura mudou, as janelas mudaram, as pessoas mudaram… e mesmo assim, eu sei que ali mora um pedaço de mim.
O mato tenta engolir as lembranças, a poeira quer apagar os rastros, mas a alma — essa teimosa — se recusa a esquecer. Ali foi meu refúgio, minha fortaleza, meu templo, e as risadas já não escuto mais, os grupinhos na esquina no tempo de inocência e as bolas jogadas lá na quele fundão já não vejo mais, aos poucos a vida foi dando rumo a cada um e hoje, só resta a história. Mas por que, meu Deus, o que ainda me prende aqui?
Já vivi em outras casas, outros bairros, até outras cidades. Mas em nenhum desses lugares fui tão inteiro quanto aqui. Foi aqui que meu ego aprendeu a andar de cabeça erguida. Foi aqui que aprendi a rir sem freio, a falar sem medo, a existir sem pedir licença. Aqui, eu era só eu — e bastava.
Ahhh, quanta lembrança boa… E mesmo assim, essa pergunta me cutuca como vento frio no fim da tarde: o que me prende aqui?
Talvez o que me prende não seja o lugar, mas a eternidade que ele representa. O solo onde plantei minha primeira coragem. O palco onde fui protagonista da minha própria infância. O berço onde nasceu o homem que escreve agora.
E talvez, só talvez… o que me prende aqui seja amor.
Texto Cristiano Duarte
📸 CCristiano Duarte