17/08/2025
Ana, sem título
Gabriely Santos
Jornalista/ Colunista de Cinema do Jornal de Artes
Escritora/ Poeta
“Ana, Sem título” me pegou demais. O filme começa com uma atriz/cineasta que resolve investigar através de carta trocadas por artistas latinas – que estão sendo esquecidas e precisam ser resgatadas. Porque Ana não só tinha talento e era maravilhosa e politizada e revolucionária e original e audaciosa, ela se expressava, agia no mundo, individual e coletivamente, fazendo apresentações, vídeos e fotos e protestos e aulas e oficinas e viveu entre diversos países da América Latina, fugindo de uma ditadura e uma sabotagem para a próxima, sempre renegada e exilada – como mulher, como mulher preta, como mulher preta lé***ca latina e artista. Me incomoda o quão fácil somos esquecidos e como a cineasta/narradora do filme mesmo dizia, ela se sente um pouco desconfortável e invasiva por ler aquelas cartas em que falam de Ana porque se sente invadindo a intimidade de outra pessoa e pior, de uma pessoa morta – como se fosse uma afronta, eu estou viva, ainda posso ser, me tornar – você, como morta, já não pode nada e pior (ainda) eu posso fazer o que eu quiser com a sua memória. Não é horrível que a posteridade possa fazer coisas horríveis com a gente – inclusive nenhuma, simplesmente, nos esquecer.
Saber de tantas artistas latinas incríveis e da resistência me deixa feliz/triste. Feliz, óbvio, por que sempre houveram mulheres fazendo a arte que seus corações pediam, independente do quanto o sistema alienou e oprimiu e sabotou a vida delas e ainda que Frida Kahlo seja a maior representante dessas mulheres e a única que se tornou um ícone – e tudo isso, claro, depois de morta, em vida, mesmo quando expôs em Paris, a chamavam de Ms. Rivera, como se fosse ap***s esposa de Diego e não pintora por si mesma. O fato de só ela ter tido esse reconhecimento, é claro – não diminui trabalhos muito significativos de outras dessas mulheres, pelo contrário, engrandece. Mas faz penar como fazer “sucesso” tem menos a ver puramente com talento, ainda mais em tempos como hoje em que a ditadura é outra, é a do algoritmo e esse além de ser contra qualquer resistência, premia a futilidade e o entretenimento fácil, a ostentação de coisas como se elas pudessem preencher todos os espaços onde não se consegue ser criativo, mas se tem um time inteiro criando pra si. Sei lá, nesse século a gente tem a ilusão de se comunicar com o mundo quando nosso conteúdo, muitas vezes, mau circula o quarteirão.
Mas aí, quando o filme está quase acabando – e depois de ter desconfiado que várias daquelas imagens das performances de Ana eram boas demais para terem sobrevivido num mundo onde nem seu sobrenome tinha – descobrimos que Ana é um personagem, ela é a personificação de centenas, milhares de mulheres latinas sabotadas por ditaduras e machismos, antes e ainda. As partes sobre as carnificinas feitas pelos militares no Brasil, na Argentina e no Chile existiram, pessoas se exilando no Chile de Allende pra escapar de um golpe de estado e que chegaram lá, onde mataram Allende e se exilaram, de novo, talvez pra Cuba ou México, também, existiram. Os depoimentos dos sobreviventes são reais. O trauma coletivo foi real. A luta linda das Mães da Praça de Maio.
Mas o filme não é só triste, didático – ele tem uma fotografia linda de todas as cidades latinas, principalmente a cidade do México que, por algum motivo, eu não tinha ideia que era tão bonita. Buenos Aires, Havana e Santiago, sim, a trilha-sonora também é uma ode a nossas canções e emoções. Em Havana ela vai ao Museu Nacional de Belas Artes encontrar obras de Antonia Eiriz, uma das poucas mulheres representadas lá. Em Buenos Aires ela cita a performance de Lea Lublin, argentina, em Paris, onde cuidou de seu filho um dia inteiro numa galeria (algo impossível a Ana como artista negra, mas que até hoje, dá o recado: não existem berçários em museus e galerias, não tem no Louvre, não tem no MASP, não é um lugar para mulheres, é o recado – onde é o lugar das mulheres, em casa?) e María Luisa Bemberg que começou a gravar filmes aos 59 anos. Nunca é tarde, se estamos vivos ainda. Depois revisitamos o atentado a Soledad Barras que foi assassinada no Recife e que tinha sido marcada com suásticas a navalha nas pernas. Ela foi homenageada com um poema de Mário Benedetti, porque ser artista costumava significar isso, resistência. Lembrei do poema do meu amigo Cloveci sobre Marielle. Ainda significa, mas continua não tendo o alcance que merece. Parece que arte hoje é dancinha do Tiktok, nada contra, porém, será que a arte não deveria também ser ferramenta de conscientização social?
No México além de Frida, temos o depoimento e o trabalho de Lourdes Grobet com suas fotografias de mulheres mascaradas sobre as que se mascararam para ir a luta ou mesmo como precisam usar máscaras para seus muitos papeis. E também o Massacre de Tlatecolco na Praça das Três Culturas, onde centenas de jovens protestavam contra a realização das Olimpíadas por lá e foram dizimados a tiros. E do Chile a videoarte de Pola Weiss e os murais de Ramona Parra e as intervenções do CADA, como o No +. E depois o Estádio Nacional que serviu de campo de detenção para mais de 20 mil pessoas que sofreram tortura, uma galeria de lá permanece vazia para nunca se esquecer o que houve por lá com uma placa com o nome de todos os presos. E então, voltamos para o interior do Brasil, onde a história acaba.
Sabia que precisaria escrever sobre Ana sem título quando chorei ao ver as supostas obras queimadas que ela teria deixado pra traz ao, finalmente, morrer, depois de muito ter feito arte com recicláveis do lixo porque sem material e, anônima, mas iluminada por um sonho, a louca da cidade – de Dom Pedrito ou de qualquer cidadezinha muito pequenininha desse país continental e esse continente que foi constante campo de batalha de interesses estrangeiros, ditaduras e elites locais e corporações globais e ela morreu, como disse, morreu mesmo que nunca tenha existido porque foram tantas artistas como ela que morreram como se nunca tivessem existido e eu como sou uma delas, preciso escrever pra dizer a todas as Anas, a todas as mulheres que não puderam viver a sua arte em comunhão com o mundo. continuaremos existindo, mesmo que ap***s no coração das coisas e nas resistências que sempre existirão.