13/09/2025
A polarização política que marca o Brasil contemporâneo não é apenas uma divergência de opiniões. Ela opera como sintoma psíquico-social, um modo de estruturar o laço entre sujeitos quando a realidade material não encontra vias adequadas de simbolização. O que se apresenta na superfície como disputa de ideias é, na verdade, uma patologia coletiva: um adoecimento que deriva da captura do desejo pelo discurso ideológico, hoje radicalizado e mediado por algoritmos digitais.
Ideologia como defesa delirante
Desde Freud sabemos que a repressão da pulsão não desaparece: retorna, deslocada, como sintoma. Quando a vida concreta — desigualdade, fome, precariedade, violência estrutural — não encontra representação no discurso público, cria-se um vazio simbólico. A ideologia entra nesse lugar como defesa, oferecendo narrativas totalizantes. Tanto à direita quanto à esquerda, a promessa é a mesma: o ideal de completude, de uma sociedade plena se o inimigo for eliminado. Trata-se de uma construção delirante, pois nega a falta constitutiva da vida em comum.
Na clínica, vemos o mesmo mecanismo em sujeitos que, diante do insuportável da realidade, produzem fantasias persecutórias ou soluções mágicas. A ideologia funciona como delírio coletivo: organiza o caos por meio da certeza. A convicção política, nesse registro, não é fruto de reflexão, mas de defesa contra a angústia.
Algoritmos como supereu digital
O que antes se limitava a jornais, panfletos ou tribunas agora se intensifica pelas plataformas digitais. Os algoritmos não apenas distribuem informação: eles reforçam vieses, retroalimentam identidades e fabricam bolhas de gozo coletivo. Funcionam como um supereu digital, que vigia e manda g***r do ódio ao outro. Cada “curtida” e cada “compartilhamento” reforçam a economia pulsional, criando um circuito de satisfação na indignação e no ressentimento.
Esse regime algorítmico substitui a mediação simbólica pela repetição automática. Em vez de abrir espaço para elaboração, fecha-se o sujeito em eco-chambers que operam como delírios confirmatórios. A polarização se torna, assim, uma máquina de regressão psíquica: alimenta o narcisismo das pequenas diferenças e impede a inscrição do real em palavras transformadoras.
A repressão horizontal: o Outro como carrasco
Um traço fundamental desse adoecimento é a intensificação da repressão horizontal. A oligarquia continua a explorar por meio de estruturas econômicas, mas a opressão, no cotidiano, circula entre pares: familiares, colegas, vizinhos. O cunhado que acusa o cunhado, a tia que cancela a sobrinha, o amigo que se converte em inimigo — todos se tornam agentes da voz do Outro, da vigilância coletiva.
E mais: essa repressão não vem apenas dos opositores. Dentro da própria bolha ideológica, a pressão é ainda mais intensa. A cada dia, os sujeitos são massacrados por memes superegoicos, mensagens moralizantes, ironias sádicas e micro-repressões constantes que exigem pureza ideológica e lealdade total. O gozo não está apenas em atacar o “inimigo externo”, mas em vigiar e punir os próprios pares, convertendo o espaço da bolha em um campo de sadismo cotidiano. É o supereu em sua forma mais cruel: quanto mais você obedece, mais culpado se sente; quanto mais se identifica, mais precisa provar sua fidelidade.
A falha da simbolização e a regressão psicótica
Quando o conflito material não se simboliza, retorna como excesso. Freud já apontava: onde a palavra falha, o corpo adoece. Aqui é o corpo social que se desorganiza. O resultado é um estado de regressão: indivíduos aderem a posições rígidas, persecutórias, quase psicóticas. Não é exagero: o delírio político cumpre a mesma função clínica do delírio psicótico — dar sentido ao insuportável, mesmo que à custa da realidade.
A polarização, nesse registro, é menos política do que clínica. Os sujeitos não discutem projetos de sociedade, mas defendem identidades imaginárias contra inimigos fantasmáticos. O real da vida — o limite, a perda, a falta — é recusado. No lugar da simbolização, instala-se a certeza. No lugar do conflito elaborável, a guerra fria permanente.
Se a polarização é um adoecimento, não basta combatê-la com mais ideologia. A tarefa é clínica: abrir espaço de escuta, devolver às palavras o peso do real, reconstituir a simbolização do conflito material. Enquanto prevalecer o circuito ideologia–algoritmo–gozo, o país permanecerá regredido, os sujeitos alienados em delírios de completude, incapazes de elaborar as contradições históricas que os atravessam.
A psicanálise oferece uma chave preciosa: reconhecer que o mal-estar não se resolve pela eliminação do outro, nem pela lealdade cega ao grupo, mas pela elaboração da falta. Só assim será possível romper o circuito de adoecimento e reencontrar, no campo político, algo além do delírio compartilhado — uma palavra que simbolize o real, em vez de negá-lo.