
24/07/2025
Preta Gil
Como a conheci e o que lembro dela
Por Themis Pereira de Souza Vianna
Há uma beleza presente em toda a alma humana. É aquela beleza que transcende a amabilidade formal, que vem lá do fundo do coração, que faz com que os minutos se escoam leves e rápidos, quase não percebidos.
Essa experiência eu tive há mais de 20 anos, quando conheci pessoalmente a Preta Gil em uma apresentação no Rio de Janeiro. Ela me pegou pelo braço e me fez dançar no palco (para quem não sabe, eu danço bem). Um momento mágico, uma vez que foi uma atitude espontânea dela, sorrindo-me docemente simpática, despertando uma sensação compensadora de estar ali num ambiente de show e ter sido focada por aquela que protagonizava o espetáculo. Enfim, pequenos vislumbres na vida — como essa experiência com Preta Gil — são raros, mas suavizam as arestas da nossa existência com boas recordações.
Ela e a sua morte é meu tema de hoje. Apenas viveu a metade da vida, deixando seus queridos aos 50 anos no domingo (20/07). Uma idade que nos dias de hoje as pessoas ainda são relativamente jovens. Fez cursos de teatro e dança. Tinha facilidade de se comunicar com o público e com as pessoas individualmente. Tinha ainda muita estrada diante de si. Morreu com muito capital artístico, era cantora, atriz, dançarina, produtora e publicitária.
Sempre estava de bem com a vida. Dizia, “tenho mil privilégios, não tenho como reclamar”. E ela respirava liberdade. No seu ver, as coisas tinham que ser belas e impressionantes. Entregava-se à vida para sorver dela o que há de melhor. Enfim, ela era alguém que pertencia à arte musical, à qual decidiu entregar-se como sua opção de carreira.
Filha de Gilberto Gil, sobrinha de Caetano Veloso, afilhada de Gal Costa, fez carreira na música dentro de um rico contexto de cantores que a influenciaram. Começou com o lançamento do primeiro álbum destacando o hit “Sinais de Fogo”. Seguiram mais dois álbuns, um em 2005 e outro em 2010. Com este álbum percorreu o Brasil durante sete anos. Daí para frente diversificou e adotou de forma eclética vários gêneros musicais, escolhidos entre os quais a inspiravam. Com este repertório criou o show “Baile da Preta”. Teve também uma vida influente nos carnavais. Tornou-se visível como figura pública e recebeu o convite para um programa de televisão onde deveria conversar com convidados falando sobre s**o. Em 2021 gravou com seu filho, Fran, “Meu Xodó”. E como atriz participou em novelas. Passou por três casamentos, o primeiro com o ator Otávio Müller, tiveram juntos o filho Francisco Gil. Segundo casamento foi com o mergulhador Carlos Henrique Lima e o terceiro com Rodrigo Godoy, casamento que terminou em 2023.
Nesse ano grandes sombras começaram a se projetar sobre Preta Gil. Foram dois componentes: o fim do casamento e o diagnóstico de câncer. Estava no topo da vida, mas aquelas forças sobre as quais ninguém tem o domínio, a levaram lentamente ao declínio. Um tempo quando as pessoas vivem um tipo de vida de profunda interiorização. As reflexões f**am mais frequentes e abrem portas para lugares nunca imaginados. O corpo é varrido por uma sensação que muda de intensidade, alternando-se entre a nostalgia, dor e a esperança. Mas a sensação é mutável e caprichosamente se aproxima com o rosto sorridente e alentador. Porém, sem aviso prévio, o corpo dá a si o direito de mostrar a cara amarga de maus presságios.
O escritor Irwin D. Yalom contextualiza esses momentos, afirmando: “Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça (...). No final, ela vence.
Preta Gil a partir de 2023 viveu dois impactos: o diagnóstico de um melanoma que se infiltrou silenciosamente e o consequente fim do casamento, moendo seu alicerce emocional. A vida se mostrava diante dela com seus pequenos detalhes químicos potencialmente ameaçadores. Detalhes que não poupam reis com suas coroas e cetros, nem os heróis com suas armas, e apavoram os tiranos com seus arcanos cheios de fantasmas ameaçadores de suas vítimas devido a crueldade que sofreram.
A cortina do palco desce para dar lugar ao médico de jaleco branco e a parafernália de instrumentos da tecnologia avançada de ondas eletromagnéticas que penetram indolores no corpo. Mas depende do tipo de câncer, ele requer inconfortáveis sessões de quimioterapia, o que ocorreu com a Preta Gil. Depois foi a Nova York para tratar-se com recursos mais avançados. À medida que a doença evoluía, amigos e familiares não a abandonaram. Foram visitá-la nos Estados Unidos também suas irmãs, seu pai, Gilberto Gil e a madrasta Flora Gil. Além das visitas, a troca de mensagens pela internet era permanente.
O calor humano de seus amigos e familiares amenizava seu estado de fraqueza e dor de um câncer teimoso que não se rendia. Chega o momento que a batalha entre a enfermidade e o corpo, a doença acomoda o corpo e proclama sua vitória. Uma metamorfose que esmaga a lógica e o bom-senso.
Preta Gil adormeceu ao lado de seu filho, que lhe prestou assídua presença. Nessa passagem, nos restos de sua lucidez, talvez, como passe de mágica, — peço licença para usar minha imaginação, emergiam do fundo memória dela, fragmentos de lembranças da música “Drão” — cantada pela última vez ao lado de seu pai. Cuja letra é considerada “um hino ao fim dos relacionamentos”. ... “Não pense na separação. Não despedace o coração. O verdadeiro amor... estende-se infinito...”. enquanto isso a morte a recolhia suave, com mãos afetuosas cheias de ternura para estendê-la ao infinito.