18/08/2025
O Sítio do Vento Frio
(Baseado em um caso verídico vivido por um colega)
O sítio ficava afastado da estrada principal, escondido atrás de um corredor de árvores retorcidas, cercado por mato alto. O vento ali parecia falar — um assobio constante que se infiltrava pelas frestas das janelas e carregava um frio que não combinava com o clima.
O morador, um homem de fé vacilante, aceitara o acordo: cuidar da propriedade em troca de moradia. O serviço era simples — vigiar o local, manter o básico em ordem e alimentar o cão enorme que vivia acorrentado no pátio. Um Fila de presença intimidadora, que ele evitava encarar por muito tempo.
A casa, de madeira antiga, tinha cheiro de m**o e um piso que rangia como se reclamasse de cada passo. O silêncio ali era peculiar, quebrado apenas por sons vindos de longe: um galho que caía, um coaxar distante, o latido isolado do cão na madrugada.
Poucos vizinhos sabiam do passado do lugar, mas quem falava, falava baixo. Diziam que, antes de ser sítio, a casa pertencera a um homem recluso, acusado de coisas que ninguém detalhava. Ele morrera ali — alguns afirmavam que de forma trágica, outros que não morrera sozinho.
O novo morador tentava não pensar nisso. Mesmo assim, nas primeiras semanas, começou a sentir algo errado: calafrios sem explicação, a sensação de estar sendo observado, e sonhos em que mãos invisíveis apertavam seu pescoço enquanto ele tentava clamar o nome de Jesus — sem som algum sair de sua boca.
Foi então que começaram as noites da coberta.
Na primeira, sentiu um leve puxão. Achou que fosse o filhote de gato que havia adotado para fazer companhia. Puxou de volta e voltou a dormir.
Na segunda noite, o mesmo — a coberta sendo arrastada devagar. Ainda assim, não deu importância.
Mas na terceira… a história mudou.
A madrugada estava fria. O caseiro acordou com a mesma sensação: algo puxando a coberta. Olhou para os pés da cama — ninguém. Puxou de volta. O movimento continuou, como um jogo silencioso.
Decidiu segurar firme, um desafio mudo para o que quer que fosse.
Foi então que a força mudou. A coberta foi arrancada com violência de suas mãos, num movimento tão brusco que deslizou pelo colchão e caiu no chão com um baque surdo.
O silêncio que se seguiu era denso, sufocante.
O filhote de gato estava encolhido num canto do quarto, o pelo eriçado, os olhos arregalados fixos em um ponto do vazio — exatamente onde a coberta estivera segundos antes.
Ele sabia que não havia ninguém na casa além dele e do gato. E pela brutalidade daquele puxão, nem um gato adulto conseguiria reproduzir tal força.
Ficou sentado na cama, sem se mover, até ver o primeiro raio de sol entrar pela janela.
Nos dias seguintes, tentou ignorar o ocorrido. Seguia a rotina, mas a sensação de estar sendo observado se intensificava. O gato, antes brincalhão, agora se comportava de forma estranha — sempre encarando o corredor que levava à sala da frente, com o corpo arqueado e o rabo eriçado.
Foi numa tarde chuvosa que ele decidiu visitar um vizinho mais velho, conhecido por guardar “histórias da vila”. Entre um mate e outro, deixou escapar:
— Sabe alguma coisa sobre a casa onde moro?
O velho franziu a testa e demorou a responder:
— Essa casa… era do seu Lázaro. Gente estranha, de poucas palavras. Depois que a mulher sumiu, ficou mais fechado ainda. Teve gente que jurou ouvir briga feia naquela última noite dela.
— E… como ele morreu? — perguntou, tentando soar casual.
— Encontraram morto no quarto. Ninguém sabe bem como. Não tinha sinal de luta… mas o corpo parecia que tinha sido… sufocado.
O caseiro voltou para o sítio com um arrepio na espinha.
Naquela noite, jurou que não cederia ao medo.
Trancou as portas, apagou as luzes e deitou-se cedo. Por volta das duas e meia, o ar do quarto ficou gelado.
Primeiro, veio o ranger suave do assoalho.
Depois, o peso no ambiente, como se algo invisível tivesse entrado.
Ele manteve os olhos abertos, fixos no teto.
A presença parou ao lado da cama.
— Eu sei quem você é… e sei como terminou. Não é mais sua casa. Você precisa ir — disse, a voz firme apesar do coração disparado.
O ar ficou mais pesado. A coberta começou a deslizar de novo, primeiro devagar, depois com força. Ele segurou com as duas mãos. O cabo de guerra invisível durou alguns segundos, até que a voz surgiu, rouca, quase um sussurro:
— Ela nunca se foi…
O choque quase o fez soltar, mas resistiu. O gato soltou um miado agudo e fugiu do quarto.
Num último puxão, a coberta parou. O frio desapareceu tão rápido quanto veio.
Quando acendeu a luz, não havia nada. Só a porta escancarada, balançando lentamente, e duas manchas escuras no chão — como marcas de pés descalços.
Na manhã seguinte, pensou em ir embora.
Mas ficou.
O sítio voltou ao silêncio habitual e nunca mais houve outro episódio.
Ainda assim, às vezes, no corredor de árvores, o vento muda de tom.
E ele sabe.
O silêncio não é sempre paz.
Às vezes, é apenas o tempo que o medo leva para respirar de novo.