04/10/2025
A MARODA DO CABOCLO DO MARACUJÁ
O casal só queria sossego, mas quase acaba em tira-gosto de visagem. No fim, aprenderam do jeito mais cruel: no Pará, se tu não respeita o santo da casa… ele te bota pra correr
Eu namorava uma garota que tinha parentes na Ilha do Maracujá, bem em frente à cidade de Belém. Eu, ela e meu irmão mais novo, no ano de 2004, fomos passar o fim de semana por lá.
Me arrependi da graça...
Quando chegamos no trapiche, fomos recebidos pelos tios dela. Estavam apressados, para o velório de uma conhecida deles do outro lado da ilha. Nos cumprimentaram rápido e só disseram:
— Fiquem à vontade, a casa é de vocês!
Espia… eu me animei logo. Mal sabia eu que aquele era o último lugar do mundo pra f**ar à vontade.
Entramos na casa, toda de madeira do tipo ribeirinha, e de cara, tomei um susto: atrás da porta uma escultura de um índio, eu nunca tinha visto.
— Não te assusta, isso aí é o caboclo do titio — disse ela.
— Olha, com todo respeito, mas nisso eu não acredito — banquei o descrente.
Reparei também que, bem na frente da imagem, tinha uma vela e um copo de cachaça cheio.
Guardamos as coisas, e fomos pro terreiro pegar açaí. Era bonito demais: um açaizal grande. Pedi pra ela me ensinar a subir no açaizeiro. E quando ela foi dando as dicas, ouvi passos pesados dentro da casa. Como o assoalho era alto e de tábuas, o ranger dava pra ouvir nitidamente.
— Égua… mas quem tá andando na casa, se só tá nós aqui?
Ela respondeu como a coisa mais normal do mundo:
— É o caboclo do meu tio, andando.
Eu fiquei pasmo.
— Potoca. Isso não existe! — falei sério.
Só que, no fundo deu frio na barriga. Não era ela, nem meu irmão — estavam bem na minha frente os dois.
O mormaço da tarde deu sede e entramos pra beber água. Foi quando vi o copo de cachaça se mexer sozinho no chão. A bebida estava na metade.
— Tu que bebeste ou jogaste fora? — perguntei.
— Foi o caboclo do titio que tomou.
Pronto. Aí já me bateu um arrepio na pele e uma cuíra estranha.
Voltamos pro terreiro, tentei me distrair. Eu e meu irmão conseguimos subir no açaizeiro e pegamos o bendito cacho de açaí. Mas a descida foi um tormento: o couro do peito e dos pés tudo ralado.
Quando escureceu, entrei de novo na casa e vi: o copo do caboclo já estava quase seco. Bateu o desespero: “Se a cachaça acabar, será que ele vai querer beber a gente?” Engoli o medo com farinha, e tentei parecer forte.
O jantar foi a luz de lamparina, já que energia elétrica nem sonhando na ilha. Um vento frio entrou pela casa e apagou todas as lamparinas. E olha: janelas e portas estavam fechadas. Não tinha como. Foi então que me deparei com uma sombra enorme, na forma de homem parrudo, se formou atrás dela.
— Égua! Atrás de ti! — gritei.
Ela se virou e também viu a teba da sombra. Corremos pra sala no breu. Ela acendeu as velas do altar do caboclo, e eu, já passando mal, fui acendendo as lamparinas. Até a fome sumiu na hora.
Armei uma rede na sala e mandei meu irmão ir dormir no quarto. Só que, pouco tempo depois, ele me volta correndo e olhos esbugalhados:
— Me bateram... Eu apanhei de alguém!
O medo tomou de conta. Ficamos os três encolhidos na mesma rede.
Até que puxaram nosso lençol.
Rapaz, a gente deu um pulo só faltando botar o coração pela goela. Tentamos abrir a porta pra fugir, mas o nervoso era tão grande que a chave não enfiava no buraco.
Foi aí que ouvimos: toc, toc, toc... barulho de faca sendo cravada na parede. Pisadas vindo da cozinha. O assoalho estremecendo.
E nada da porta abrir. É agora que vou levar o destempero. Acabou a cachaça e o índio quer o tira-gosto. Eu me tremia mais que língua de jambú.
Quando finalmente a porta abriu, saímos desembestados pro trapiche. E no escuro, vimos a coisa atrás de nós. Ela batia nos cachorros que latiam em cima dela. Não dava pra definir o que era. Mas vimos pernas de homem chutando os cachorros.
Nós no trapiche... sem saída. Era enfrentar ou pular no rio.
Por sorte a coisa desviou e correu pra mata com os cachorros atrás. Passamos a noite no trapiche, ao relento, levando surra de carapanã. Rezando pra coisa não voltar.
Quando o dia amanheceu, os tios dela chegaram no barco. A primeira coisa que fizemos foi despejar o sufoco que passamos.
O tio dela com a maior calma do mundo:
— Ixi… esqueci de avisar ao meu caboclo que vocês são amigos. Ele protege a casa. Por isso botou vocês pra correr. Mas fiquem à vontade, que vou conversar com ele.
Quase morri com o: “Fiquem à vontade”, Mas tá! Quem tá a vontade é a assombração.
Entramos de volta, mortos de cabreiros, e lá estava a faca cravada no chão da sala. O tio dela só retirou e guardou de boa.
O resto do dia tudo correu bem.
Quando foi a noite, vi o tio se ajoelhar no altar, fazer o sinal da cruz, bater três vezes no chão… e, de repente, a chama da vela pulou e tomou forma de um homem.
Acreditem... começou a conversar com ele numa língua que eu não entendia.
Depois da prosa, a chama voltou ao normal. O tio olhou direto pra mim por cima do ombro e disse:
— Agora tu acredita, né?
Eu só consegui balançar a cabeça com um sim. Dormir? Nem sonhando. Passei a noite de olhos arregalados que nem tralhoto.
Nos dias seguintes, nada de estranho aconteceu. Visitamos outros parentes e percebi que todas as casas tinham altares com a mesma imagem e copos de cachaça atrás da porta.
Ficou a lição: nunca duvidar do desconhecido. Quase levo o farelo.
E eu ti digo mais: esse fato é verdade verdadeira e verídico!
Pira Paz! Nunca mais!
Relato: Jeo Pantoja