02/08/2025
MICAELA, A AMANTE - 8
Com o corrola, Mauro foi ao encontro do Madeira, e juntos discutiam alguns aspectos do seu projecto musical. Tencionavam gravar um EP. Mas antes, não faltou espanto: "Mauro, conduzindo um dos carros do pai?"
- O que aconteceu? Pegaste o carro às escondidas?
- Não, o velho deu-me as chaves... Não vais acreditar no que aconteceu.
E assim, Mauro contou tudo ao seu companheiro.
- Melhor não contar a verdade à tua mãe, pelo contrário, tira proveito da situação - aconselhou o Madeira. - Podes faturar muito com isso!
Algumas horas depois, Mauro entrou em casa a cantarolar uma melodia que ainda não tinha nome. Na mochila, escondido entre cadernos de letras e cabos, trazia o orçamento dos novos instrumentos: uma guitarra eléctrica, um sintetizador e dois microfones condensadores. Tudo novo. Tudo profissional.
Na mente, o plano já estava delineado. Tencionavam seguir o plano articulado com o seu amigo.
Foi directo ao escritório - um espaço da casa onde Neto, seu pai, tratava dos assuntos do trabalho. Ali, o pai terminava de revisar um processo.
- Pai, preciso de falar contigo. É importante.
Neto ergueu os olhos devagar, como quem já adivinhava o teor da conversa. Ficou em silêncio.
- A minha banda está a preparar um concerto no Novo Cine. Vai ser grande. Vamos precisar de equipamento novo. E... não tenho como cobrir tudo.
Neto largou a caneta. Estudou o filho, como se medisse o peso das palavras que viriam.
- Estás a pedir dinheiro para as tuas brincadeiras?
- Não estou a pedir. Estou a... lembrar-te do que sabes.
Silêncio. Frio.
Mauro aproximou-se, retirou o papel da mochila e colocou-o sobre a secretária.
- Está tudo aí. Os preços, as lojas. Dá para pagar com cartão. Ou em dinheiro. Como preferires.
Neto cerrou os punhos. Não queria ceder. Nunca quis aquele caminho para o filho. Sempre achou que arte era fuga, era fraqueza, era desvio.
Mas agora, calar Mauro era questão de sobrevivência.
- Isso não é carreira, Mauro. É passatempo de meninos mimados. Mas...
Fez uma pausa. Depois levantou-se, abriu o cofre embutido na parede e tirou um envelope recheado.
- Que seja a última vez - disse, entregando-o. - Se voltares a chatear-me com mais pedidos desses, eu mesmo conto à tua mãe o que aconteceu. E se eu contar, estará tudo destruído. É isso que queres? Já pensaste nas tuas irmãs? E na figura de filho chantagista que estás a fazer?
Mauro fingiu que tremeu, mas sorriu por dentro. Sabia que tinha o pai preso pela culpa.
Lurdes, do outro lado da porta, não ouviu quase nada porque conversavam aos sussurros. Mas viu, viu tudo, porque a porta estava entreaberta: o envelope, o olhar abatido de Neto, a expressão vitoriosa de Mauro.
À noite, quando todos dormiam, Lurdes desceu até à garagem. Espreitou dentro do carro do marido, como quem procura rastos. Nada de estranho - à primeira vista. Mas alguma coisa não encaixava. Neto tinha pr*********os numa das gavetas do carro. Então, vasculhou o telemóvel do marido à procura de alguma informação e viu notificações (mensagens) das movimentações da conta bancária - o dinheiro saía fácil demais, com gastos em lojas femininas, compra de bebidas e comida em diferentes estabelecimentos. Procurou mensagens comprometedoras e não viu nada. Mas suspeitou de um número gravado como “Secretária”. Apenas. O número não tinha mensagens partilhadas, mas tinha vários registos de chamadas no histórico. E Lurdes conhecia bem a secretária de Neto - era uma senhora bem mais velha, sua velha conhecida - e aquele não era o seu número. Era mais um motivo para suspeitar.
E outra questão era: por que estaria a ser tão generoso com Mauro agora? Por que dar ao miúdo tudo o que ele pede, mesmo este não estando a trilhar os seus passos? Ela deixou isso de lado, por enquanto.
No dia seguinte, Lurdes ligou para a verdadeira secretária de Neto e perguntou se ela havia trocado de número e se Neto tinha outra secretária. A resposta foi a esperada: “Não.” Lurdes não adiantou mais nenhuma informação, apenas agradeceu e decidiu, então, não parar com as suas investigações...
- Preciso que alguém siga o meu marido - disse ela para si mesma. - Mas vou segui-lo eu mesma.
No trabalho, a secretária de Neto questionou o patrão se havia algum problema com ela, visto que a esposa ligou a falar de uma nova secretária. Com isto, Neto pôs-se a desconfiar.
Ao sair do trabalho, tentou ir ver Micaela, mas apercebeu-se de que estava a ser seguido. Com isto, desviou-se da rota e foi parar a um bar. A esposa estava num táxi e seguia o carro do marido para descobrir alguma coisa. E foi assim naquele dia e no dia seguinte.
Dois dias depois, Neto apercebeu-se de que um táxi rondava o seu serviço. Era o mesmo táxi, da mesma empresa. Era Lurdes, atrás de informações.
Quando voltou para casa nessa noite, Lurdes não estava na cozinha, como era habitual. Acabara de chegar. A comida era agora preparada pela empregada.
- Está boa, a investigação? - atirou ele, seco.
Lurdes largou a sua bolsa, assustada.
- De que estás a falar? Disse ela, direcionando-se para o quarto do casal
E Neto seguiu-a.
- Pensas que sou b***o? Julgas que não notei a sombra atrás de mim? O táxi? Os olhares? As entrevistas que andas a fazer aos guardas do meu escritório sobre os meus horários de saída?
- E por que estás a esconder coisas de mim? A quem tens enviado dinheiro? E quem é Micaela, que gravaste como “Secretária”? É a p**a com que andas a trair-me?
Era o princípio de uma briga.
As duas irmãs de Mauro ficaram pasmas, na sala, assustadas. Nunca viram os pais em conflito, daquele jeito.
- Vais dar uma de detective agora? Agora espiamos os telemóveis um do outro? Agora há segredos em casa? Se estás desconfiada de algo, por que não perguntas directamente?
- Quem é Micaela? - questionou Lurdes, aos gritos. Como quem estivesse farta.
- O que se passa contigo? Eu nunca te vi assim.
Neto enrolava-se, mas nada dizia. Tentava desviar, fazer jogo de sentimentos e lançar culpa sobre Lurdes por ela estar a fazer coisas às escondidas. Típico de chantagistas.
Naquele momento, as duas filhas estavam em choque. Não era comum ouvir os pais a discutirem em tons tão altos altos. O casal estava no quarto, mas dava para ouvir, em alto e bom som, tudo sobre a discussão.
- Sabes o que me magoa, Lurdes? Não é achares que eu sou capaz de te trair. É achares que mereço ser seguido como um criminoso.
- Então prova que não és!
O silêncio que se seguiu foi mais violento do que qualquer grito.
Enquanto isso, Mauro experimentava a nova guitarra num estúdio improvisado lá fora, na garagem. A casa começava a ruir pelas fundações. O cheiro a guerra estava por todo o lado.
Lurdes não parava de juntar peças: as contas do banco, as ausências, o olhar envergonhado de Mauro, o súbito silêncio de Neto. Algo existia ali, entre os dois. Algo partilhado. Algo sujo.
E ela prometeu a si mesma: não ia parar até saber o quê.
E foi quando, de repente, Mauro entrou em casa e apercebeu-se das discussões. A briga estava tão feia que se ouviam as coisas a partir-se. Na tentativa de intervir, Mauro foi em direção ao quarto dos pais.
Era o início da decadência familiar.
Continua...
Autor: MALERO JEQUE
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