16/12/2025
a primeira vez
Tal como todas as crianças, ia à missa como quem vai a uma obrigação.
Sentava-me direita, fitava a parede da frente, desconectada de qualquer entusiasmo litúrgico, e sem uma gota de vocação para servir o prior.
Nem o prior nem ninguém, servir não é comigo.
Ficava quieta entre a terceira fila e a porta de saída, o ponto exato onde a minha presença não incomodava e a ausência não era notada pela irmã Maria de Carvalho.
Um dia, alguém decidiu que era hora de “participar mais”. A irmã Odete, disse que era necessário.
Lá fui, empurrada, subir ao altar para ser, naquele dia, com o meu amigo Vasco, acólita. Na mesa, rendas, castiçais em bronze, e no meio, o cálice dourado.
Disseram-me o que fazer, ou quase.
Segura isto, aproxima aquilo, e eu assentia, com a confiança de quem não percebe metade do que está a acontecer, perdida num ritual onde nada fazia sentido à minha coordenação motora.
Chegado o momento do vinho, simples gesto, pegar, verter o vinho no cálice do senhor prior, recuar.
A gravidade, essa força impiedosa, conspirou contra mim.
Entornei o vinho. Não uma gota, tudo.
Um rio que manchou a toalha. Parecia o cenário de um homicídio.
O prior, homem treinado para que as tragédias não interrompam a missa, olhou para o desastre com resignação.
Fitou-me, abanou a cabeça com aquela mistura de pena e impaciência, pegou no cálice, fingiu beber, e seguiu em frente e eu, aprendi ali, entre o vinho derramado e o olhar dele, que há coisas que nem Deus Nosso Senhor salva.
O Vasco e eu partilhámos um riso contido. A homília inteira foi atravessada pelas nossas cabeças baixas e ombros que mal conseguiam conter o tremor silencioso das gargalhadas reprimidas.
Nunca mais me chamaram para ajudar o senhor prior.
E eu, levei o acontecido como um sinal divino e obedeci.
In "Às dez atrás da igreja"
Ana Mota
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