14/08/2025
Já percorreram longos quilómetros. A viagem de carro ainda vai a meio e a Mariana precisa de um café. Pouco ou nada ouve da conversa da amiga.
«Ouve, sonhadora, podemos parar para tomar um café?», pergunta a amiga que a acompanha hoje. Vão para mais um concerto — tornou-se quase obrigatório, durante o verão, fazê-lo. Esse é o grande laço que as une: concertos de verão.
Sendo amigas desde sempre, as suas vidas tomaram rumos diferentes. As oportunidades de estarem juntas tornaram-se mais raras, mas os concertos voltam a juntá-las ano após ano.
«Sim, Marta, paramos. Preciso mesmo de um café!», exclama Mariana, com um sorriso na voz.
Depois de se sentarem, Marta questiona:
«Que sonho te atormenta hoje?»
«Hoje? Nenhum, acho que não sonhei esta noite… pelo menos, que me lembre.»
«Estiveste a sonhar até agora. Por onde andaste, não sei… mas tenho a certeza de que foste perdendo grande parte da conversa que fomos tendo…»
Mariana olha-a surpresa. Na maioria das vezes, consegue fazer ambas as coisas: sonhar e conversar, sem que ninguém repare.
Riem juntas da piada.
«E eu a achar que estava a disfarçar bem», diz Mariana, nada envergonhada pelos sonhos que apareceram durante a viagem.
«Meu amor, conheço-te tão bem… por vezes acho que melhor do que tu. Raramente estás por cá, e, quando o fazes, pouco tempo permaneces. Tudo o que acontece dentro de ti é demasiado importante para que fiques por cá. Um dia, gostava de saber o que se esconde por lá, mesmo sabendo que, por agora, irás continuar a lutar contra isso», termina com um sorriso.
«Marta…», começa Mariana a tentar explicar o que nunca conseguiu fazer.
«Mariana, nĂŁo precisas de justificar, mas caramba, adorava saber o que anda por aĂ… Por vezes, ficas tĂŁo feliz… Adorava poder fazer parte desses momentos — e dos outros, onde te perdes em dores que eu sei nĂŁo serem tuas. Poderia, talvez, ajudar-te…», termina.
Mariana pensa nas palavras da amiga. Há já algum tempo que sabe que se perde demasiado dentro de si, mas ainda não tinha total perceção de que o mundo — o seu mundo — também sabia disso.
«Por vezes, tenho medo de me perder dentro de mim», diz com sinceridade. «Por vezes, torna-se tão avassalador… Parece quase outra vida, mesmo sabendo que ela não é real», termina, esperando algum tipo de recriminação ou mesmo preocupação com a sua sanidade mental.
Depois deste desabafo, Mariana demora longos minutos a olhar a amiga. Quando o faz, vĂŞ um sorriso de orgulho no seu rosto.
«Mariana, meu amor, tu não és maluca. De todo! A única coisa que te prende és tu. Tu podes procurar esse mundo onde te perdes, podes criá-lo aqui, na vida real — como lhe chamas —, mas tens medo. Medo de perder o que tens aqui.»
«Não é assim tão fácil, Marta…», diz num tom triste.
«Porquê?»
Os porquĂŞs sĂŁo sempre difĂceis de responder, porque as respostas podem ser simples para os outros, mas raramente o sĂŁo para quem responde. É isso que assombra a resposta.
«Aquela que sou eu lá… não sou eu. Talvez seja por isso», responde.
«Talvez sejas tu, mas ainda estejas escondida dentro de ti por aqui. Talvez só precises de te deixar ir. Que tal experimentares fazê-lo hoje? Só estou aqui eu, e não te vou julgar. Não te vou apontar o dedo em momento nenhum. Vive como achas que deves, e depois logo vês como te sentes. Talvez este seja o momento em que te encontras com essa pessoa que te assombra os sonhos», diz com um sorriso, enquanto se levanta.
Mariana deixa-se ficar sentada, a tentar perceber onde foram parar as barreiras que criou.
Ela e a Marta conhecem-se desde sempre. Ela é uma das poucas pessoas que a conhece de verdade, sabe onde está e para onde deseja ir — mesmo que raramente o faça. Desafia-a a seguir em frente, a seguir os seus sonhos. É das poucas que respeita os seus sonhos acordada. É uma das poucas pessoas que respeita a verdadeira ascensão da palavra.
Longos minutos depois, levanta-se e segue a amiga.
Mariana mira, durante vários minutos, o seu reflexo tão familiar. Aprendeu a reconhecer-se no olhar que a fita de volta.
Estes momentos de encontro consigo fazem com que aprenda a reconhecer os sinais.
Os sinais que os olhos lhe transmitem. Os sinais de que vai voltar a viajar para a terra dos sonhos.
Aquela que vê ao longe a viver a vida que ainda não tem. Aquela que sorri abertamente perante a vida, perante os outros. Aquela que sente a terra nos pés, que acorda feliz quando sente o cheiro a terra molhada.
Aquela.
Ela, quando se permite sonhar.
O espelho permite-lhe ver o que poderia ser, se ela se permitisse. O que poderia acontecer com ela. A leveza que poderia chegar se ela se permitisse ser ela no mundo real.
O reflexo devolve-lhe o olhar expectante, como outras vezes em que se encontraram. Ouve a pergunta novamente:
«Estás pronta para embarcar no barco certo, no barco em que o teu futuro ambicionado te aguarda?»
«Mariana, vamos?», a pergunta da amiga trá-la de volta à realidade.
E a magia — a terra dos sonhos — quebra-se. Volta para a sua realidade, deitando um último olhar para o seu reflexo, antes de virar as costas, mais uma vez, aos sonhos que a perturbam, que a perseguem sem se manifestarem — porque ela não o permite.
«Sim, vamos. Precisamos de chegar ao concerto», responde com um sorriso e entusiasmo na voz que nem ela sabe de onde apareceu. Aproxima-se da amiga, abraçam-se e saem da casa de banho.
«E tu precisas de sonhar mais e mais, até que eles se tornem realidade… e tu sejas só uma, inteira.»
Mariana arriscou — e, naquele dia, começou a viver os sonhos que a permitiram sentir.
— Sónia Brandão
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