25/02/2025
GÁS [as 7 versões de uma história] - Versão IV.: Emília, por Camila R. Duarte ✂️
“Peguei numa das cestas arrecadadas por baixo do lava-louça, na prateleira de baixo. Era pequena, mas bastava, só queria algumas amoras. Aroma? Ãroma? Amor, Ã? Amora?
A relva, novamente moldada aos meus pés no ritmo dos passos lentos. Estava frio; pus-me arrepiada, com os pelos cada vez mais hirtos, a criticar com cansaço os cheiros da manhã húmida. Segurava, bem preso entre os dedos ásperos, tecido suficiente para evitar que o
vestido raspasse no orvalho das folhas no chão. Quão suja estaria eu para julgar sujo o orvalho matinal.
Avistei a cerca. A cerca de cinco centímetros da quase-cauda do meu vestido, uma farpa impede-o de avançar comigo. Um rasgão, diria fatal, no vestido predileto para cerimónias, dias especiais e crises de espírito - antes farpas nos olhos do que no meu rico vestido.
Bati com a cesta na cerca até ela abrir espigões de madeira. Vamos às amoras.
O mato adensou: mais terra batida, mais árvores, mais gafanhotos de pedra em pedra, mais grilos e cigarras audíveis pelo caminho. As folhas desfaziam-se debaixo dos meus pés, com um daqueles barulhos de certa forma crocantes. Apercebia-me, aos poucos, de que rodava a
cabeça como uma galinha, ávida de estímulo. Já não me aguentava no campo, onde nada buzinava, gritava, colidia, caluniava ou doía. Não me sentia formiga, pequena, inútil, perdida; isto enquanto era assolada por uma noção de pertença, finitude fácil, utilidade indeterminada e orientação inata. Eram estranhas. Eu e a noção. Estávamos a conhecer-nos melhor, íamos f**ando íntimas a cada pegada poeirenta que deixava para trás. Quando o nosso encontro foi inter-
-rompido: as amoras. Suspensas das silvas, sobrepostas às fileiras de espinhos. Eram(os) selvagens.“ (excerto retirado do conto)
GÁS sairá em abril. Reservas em breve, com a editora e os autores 🤍