09/07/2025
Série “Esquecimento” *
Autor: Marta Almeida
I
Uma cintilante palpitação até à pálpebra e as palavras por ali a dançar impressas nos artigos de opinião da revista cultural de um jornal de edição de fim de semana, que meu pai recortava, dobrava meticulosamente e de seguida colocava aleatoriamente no interior dos livros que comprava na semana seguinte.
Invariavelmente meu pai esquecia a hora do almoço. Minha mãe chamava vezes sem fim, ele dizia só mais cinco minutos para acabar o capítulo, minha mãe, impaciente voltava a chamar dizendo que o almoço f**aria frio e nesse momento meu pai dizia que estava indo mas não levantava os olhos do livro. Mesmo nos dias em que o almoço era funge lembrando os tempos de Luanda, e tanto que meu pai gostava de bater a fubá de mandioca, mesmo nesses dias demorava a leitura. Meu pai gostava de exibir a sua técnica de não deixar grumos na farinha, aprimorada tanto quanto inventada ao longo dos anos, enquanto eu segurava a panela pelas asas e a seu pedido ia deitando a fubá. E dizia, agora tu, trocávamos de lugar e eu tentava imitá-lo batendo com toda a força a colher de pau contra as paredes da panela, uma pancada seca cheia de intenção, e ele criticava dizendo que eu batia devagar e que assim não conseguiria desfazer os grumos, eu franzia o sobrolho e em jeito de protesto entregava-lhe a colher. Mesmo nesses dias meu pai esquecia o tempo e dizia “mais cinco minutos”.
Durante a semana meu pai comprava mais um livro e entrava em casa comprometido sabendo que a estante não crescia, e minha mãe suspirava que claro que só pode ser uma mania e das grandes. Habituara-me desde cedo a segui-lo quando não raras vezes entrava numa livraria e se perdia por entre corredores, e eu me interrogava, sem nunca perguntar, de onde surgiu esse amor infinito às palavras escritas sendo ele um estudioso dos números.
Era também seu hábito assinar e datar cada livro no momento em que o comprava. Numa dessas ocasiões em que ia a uma sessão de apresentação de um livro, certo final de tarde quente em uma antiga livraria de Lisboa, deu-se um daqueles encontros, raros e inesquecíveis, até onde a memória habitar. Meu pai aguardava na fila solene segurando na mão esquerda a segunda edição do livro de Poesia e Ensaio ‘Praça da Canção’ e chegada a sua vez entregou-o ao escritor Manuel Alegre, que folheando o livro nas primeiras páginas procurando espaço para a dedicatória, olhou meu pai demoradamente e num sorriso escreveu, “trinta e seis anos depois, um abraço”. Ultimamente ando apegada a esse livro e tanto me comovo com o índice sublinhado a espaços como me alegro a tatear a velha contra capa ou as páginas engelhadas.
Sim, a nossa era uma casa invadida por uma legião de palavras pronta a defender a alegria “de los ingenuos y de los canallas” como escreveu Mário Benedetti e se podia ler num recorte de jornal pregado com um pionés no topo da estante, e meu pai prometia que aquele seria o último livro iniciando talvez ali naquele exato momento a prática do esquecimento.
* A CULPA É DAS ESTRELAS Emissão #248 – 02JUL25