30/11/2025
“Algures no Pacífico-Sul, Lisboa” *
Autor: Joaquim Paulo Nogueira
1.
Quando recuperei os sentidos tinha perdido completamente a noção do lugar.
A própria ideia de lugar.
Veio-me apenas esta frase estranha, Algures no Pacífico Sul.
Gosto de me entregar às frases estranhas.
É uma forma de me aventurar.
É a pouca maneira e modo da minha vida se aventurar, agora.
O meu Pacífico Sul não tem bancos de corais, ventos e tempestades do demónio.
E é em Lisboa.
São dois braços com o formato de duas tenazes.
Enquanto me abraçam, perdem-me, no Pacífico Sul, o Tejo à minha frente.
Sempre ele e eu um diante do outro, perco-me nele como me ausento deste lugar onde não
estou, estaria,
nunca estive, estarei,
por vezes pergunto-me:
isto ainda é a minha vida?
e depois, na alteridade que o solilóquio de uma alma penada admite, repito:
isto ainda é a tua vida?
Não sei de nenhuma rota, de nenhuma linha do horizonte,
o sextante, a bússola, o próprio mapa,
perdi-os na feira da ladra,
escondidos numa pequena caixa de madrepérola que deixei num antiquário, a troco de
duas moedas.
Eram duas.
(São sempre duas as moedas da minha vida.)
Cara ou coroa. Duas faces, dois estados de alma,
(São sempre aos pares os sentimentos a que me atrevo.)
Nunca tive nada de único, de profundamente original na minha vida:
Um dia devo ter nascido, contaram-me, hoje estou aqui, é isso que sei.
Luto contra o meu desconhecimento
sobre tudo o que se mexe.
O meu mundo é um pequeno barco de papel a vogar desalmado, no Pacífico Sul, Lisboa.
2.
Quando se está verdadeiramente só, é a morte.
Ao mesmo tempo não consigo imaginar o que seja a verdadeira solidão.
Talvez pensá-la.
A vida na cidade, e não apenas no Pacífico Sul, cheia de metáforas, de espelhos, de
simulacros, de coisas que nunca foram coisas, aborrece-me de morte.
A nossa vida de cidadãos mudou muito desde a última vez que o circo chegou à cidade.
Ainda ontem encomendámos o jantar pela internet e depois comemo-lo,
a pensar que coisas ainda com o lastro de coisas estavam realmente naquela embalagem de
cartão do fast food que encomendámos sem dizer uma só palavra.
O rapaz da motocicleta pareceu-nos ainda real.
Até que disse uma palavra de plástico,
e depois outra, ainda mais uma,
foram três as palavras que proferiu sem sequer as dizer,
até pensámos que era um ser destinado para aquele ofício, os mortos-vivos nunca têm
acidentes de viação.
Só quando já ao descer das escadas olhou para trás, se percebeu naquele vislumbre uma
humanidade qualquer que nos deixou incomodados.
E enquanto mastigávamos aquilo que não era mais do que o simulacro de uma matéria cuja
memória ainda nos habitava,
uma lembrança de um cheiro, de um sabor, de um pedaço de vento particular, começámos
os dois a chorar, um choro incontrolado,
dissemos em uníssono,
as coisas que nunca foram verdadeiramente coisas tendem para a solidão.
Falta-lhes a matéria, a sensibilidade do corpo a corpo.
Não tínhamos descoberto nada de especial.
A nossa vida continuava a ser aquela vacuidade de sempre.
Não tínhamos visto nenhuma estrela,
nenhum cometa,
nenhum pó de céu, muito menos o deus-menino,
mas sentimos aquilo como uma revelação.
As coisas que nunca foram verdadeiramente coisas, tendem para a solidão.
Não há nada como a alegria de uma ideia, o prazer de uma revelação.
As coisas que há nas coisas são como mnemónicas, lastros, coisas que ficam penduradas
noutras coisas, e assim, irremediavelmente acompanhadas.
Não há verdadeira solidão quando se vive. Há a ideia generalizada de que o poema
necessita de alguma tristeza
para ser verdadeira poesia,
mas isso é um defeito com que a nossa ideia de poesia contamina o poema.
É mais um simulacro,
a juntar-se aos mil de milhões de simulacros,
que fazem tender a nossa vida para a verdadeira solidão.
3.
Disse ela, tenho saudades do tempo em que vivíamos no fundo do mar.
Era verdade, fazia-lhe falta tudo,
ou quase tudo o que podemos encontrar
no fundo do mar.
Os peixes-martelo, os tubarões, os minúsculos protozoários, as enguias, as moreias,
aquela tessitura frágil e sólida dos bancos de corais,
tenho saudades dos tempos em que tínhamos vinte anos e vivíamos no fundo do mar.
Lembras-te?
Ele lembrava-se, mas não podia dizer que sim.
Aos vinte anos tudo parece possível,
até viver no fundo do mar.
Só depois a bronquite, a apneia, a asma,
a sinusite,
o enfartanço,
e todos aqueles problemas crónicos
de quem está continuamente exposto à síndrome de uma vida às avessas.
Todas as noites ligavam a televisão da morte universal
no subúrbio e debicavam
os míseros trezentos e sessenta e cinco avos de um ano que,
diziam,
ia ser difícil.
Vai ser duro lá na empresa,
tinha começado por dizer ele,
à hora de jantar,
vão despedir pessoas e as que ficarem,
vão-lhes cortar nos subsídios, nas creches,
quando ele encostou para o lado o pratinho de camarão cozido que
comprara no hipermercado.
Lembravam-se de quando eram pobres.
Viam televisão a preto e branco e o marisco era o tremoço mijado pela mãe de Cristo.
Agora comiam fino.
Um pratinho de camarões vermelhos e o gosto a prolongar-se no palato,
essa imensa viagem entre o palato e o esófago,
uma vida diferente pensavam,
enquanto arrotavam,
seguros do progresso das suas vidas.
Ele encostou o prato para o lado.
Não sem antes a olhar,
meigo, enternecido,
por conseguir ainda ver o fundo do mar quando a mirava,
44envergonhado,
era para ele um sinal, aquele rubor que lhe subia à face
quando a olhava,
como se não fosse sua,
como se fosse um pedaço de estrela.
Pensou ainda mais uma vez:
estou cansado das coisas, as coisas cansam-me.
Não sabia explicar mais detalhadamente
a metafísica que lhe estalava com o cucuruto mas
soletrou o desejo,
gostava que as coisas não fossem estas coisas.
E arrematou perante a sua incredibilidade:
-Que fossem outras coisas.
* A CULPA É DAS ESTRELAS Emissão #263 – 26NOV25