
09/02/2025
UMA TARDE/NOITE NO 15º FESTIVAL Porta-Jazz
(Contra o Relógio, a Favor do Tempo)
(https://fb.me/e/3M38xjj5R)
O crescimento do jazz portuense (hoje com uma dinâmica criativa, académica e performativa nada inferior a Lisboa tendo em conta o rácio entre número de habitantes/ouvintes/músicos per capita deste universo musical) esta indissociável da criação da Associação Porta-Jazz, que aos dias de hoje é muito mais do que "um simples clube de jazz", uma editora discográfica (Carimbo Porta-Jazz) e um Festival já muito bem consolidado no panorama musical português, ou seja, é a mistura de todos estes elementos tornando-o num movimento maior e com o condão de ter juntado sinergias de jovens músicos portugueses (e tb estrangeiros, principalmente espanhóis) que realizaram a sua Licenciatura em Jazz via ESMAE - Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo e criaram este movimento sempre na base do "do it yourself" e a navegarem com poucos meios económicos mas com muita boa vontade.
Numa rica programação que ao todo englobou 5 dias mas com a programação centrada na sex31jan, sáb1fev e dom2fev no Teatro Municipal do Porto (nos dias anteriores foi uma espécie de warm up dividada entre Maus Hábitos - Espaço de Intervenção Cultural e Espaço Porta-Jazz), a programação como vem sendo hábito foi condensada em "Blocos" de 2 concertos e eu tive a possibilidade de assistir (como vem sendo hábito nos últimos anos) aos Blocos 4 e 5 de sábado que resultaram nos apontamentos que se seguirão:
BLOCO 4
João Próspero "SOPROS"
Coube ao Coordenador do Festival Joao Pedro Brandao dar as boas vindas a um Pequeno Auditório do Teatro Rivoli lotado seguido de uma breve apresentação do também Músico (no caso guitarrista) André B. Silva dos artistas que iriam entrar em cena - o Quarteto de João Próspero, contrabaixista, compositor e membro do projeto The Guit Kune Do. Vieram com "Sopros" na bagagem, um álbum bem gizado editado no ano passado via Carimbo Porta-Jazz.
O primeiro tema abriu com um swing bem balançado ("by the books") onde logo se destacou o génio pianístico de Miguel Meirinhos num bonito diálogo com o guitarrista Joaquim Festas, uma bela surpresa apresentado um discreto mas bonito fraseado (fazendo me lembrar o estilo de Mick Goodrick) enquanto que a bateria de Gonçalo Ribeiro se transformava numa locomotiva abrindo espaço à experimentação dos restantes elementos. A segunda mostra sonora surgiu estilo cavalgada rítmica numa guitarra à desgarrada perfilada num compasso deveras irregular onde as fronteiras entre o jazz e o rock se revelavam muito esbatidas, muito por "culpa" dos fx das 6 cordas de Festas, uma muito agradável surpresa, que teve igualmente o condão de abrir o tema seguinte com um lento preâmbulo numa toada mais "dengosa" seguida de uma exploração dos silêncios de um forma mais abstracta progredindo posteriormente para ambiências minimais-repetitivas onde o piano de Meirinhos tornava o ambiente num filme de suspense obsessivo e uptempo atingindo o clímax do concerto.
Depois de "Mar.Manhã" e "No Meu Galho" Próspero, quase sempre com os óculos na ponta do nariz e com muita música na extremidade dos seus dedos, fez os agradecimentos formais e falou da sua paixão pela escrita e respetiva obra literária do japonês Haruki Murakami (também ele um apaixonado pela arte musical, muito patente a obra "Música, Só Música" num diálogo sobre música erudita com um antigo diretor de orquestra) e do modo que o influenciou a compor este "Sopros". Essa inspiração ficou bem patente no próximo tema, "Palhaços", (o nome logo me fez lembrar Egberto Gismonti), onde o universo do omnipresente R. Sakamoto (outro distinto e, no caso saudoso, japonês) através das pentatónicas de Meirinhos muito bem complementadas pelos leque tímbrico revelado pelos pratos de G. Ribeiro e apontamentos numa espécie de gritos abafados saídos da guitarra elétrica. Sem dúvida o momento mais tocante de todo o concerto que caminhava para o seu epílogo... os melhores "Sopros" estavam mesmo guardados para o fim ("Goodbye Mr. Próspero").
Emmanuelle Bonnet Quartet
O segundo concerto dese Bloco, também no Peq. Auditório, resultou de uma ligação/conexão europeia entre a Porta-Jazz e a AMR - Genève, "uma sinergia que tem vindo a ligar o Porto e Genebra e a promover, assim, a apresentação de projetos já estabelecidos ou o estímulo à criação de novas propostas originais" - isto citando o belo caderno rosa azulado onde estava presente toda a informação sobre o festival de uma forma bem sintetizada e com um grafismo muito apelativo a cargo de Maria Mónica. O concerto abriu de forma a não deixar dúvidas - aqui seria a voz o centro das composições apresentadas por E. Bonnet além de dar nome ao quarteto e ser a compositora dos temas apresentados cedo revelou um timbre muito bem balanceado, num jazz sem preconceito em piscar o olho a um certo aroma eletrónico trip-hop, que se revelou um bom momento musical. Baladas melancólicas e paisagens gravitadas à volta da bela voz da Bonnet, que apresentou um domínio técnico assinalável e uma boa capacidade de usar também a improvisação como meio de expressão.
No 3º tema destacou-se Lucas Zibulski utilizando as mãos para ir desenvolvendo dinâmicas nas peles da sua bateria dando asas para que os restantes músicos fossem apresentando uma veia mais experimental do quarteto. A contrabaixista Tabea Kind que revelou um timbre muito assertivo imprimindo bastante dinâmica ao todo musical, foi responsável pela abertura do tema seguinte através de um pequeno momento a solo, sendo que final do mesmo a vocalista e líder dirigiu umas simpáticas palavras ao público presente convidando-o a ouvir e escutar o álbum que aqui estavam a apresentar: "Préludzet Menuet" editado em 2024 pela Unit Records. No tema seguinte evocou uma "brincadeira musical" muito dinâmica em forma de marcha desalinhada aqui interpretada por Bonnet em francês, ao contrário da maior parte dos temas cantados em língua anglo-saxónica. Espaço para exploração minimalista dos ruídos/silêncios num crescendo em estilo break beat com o baterista "a perder as (boas) estribeiras" antes do regresso ao tema inicial e a um momento de piano solo, protagonizado por Alvin Schwaar.
Último tema depois da apresentação final dos músicos, curiosamente tal como o concerto anterior, abriu espaço para uma tocante canção de embalar em forma de lamento: "Or ch`è tempo di dormire", canção italiana do período barroco composta por Tarquinio Merula (1594-1665) e aqui ganhando um formato autoral e contemporâneo. A voz vai serpenteando com a envolvência dos restantes parceiros, numa abordagem quase "radioheadiana" mas aqui completamente despida da componente eletrónica e com as mãos mais bem dadas à improvisação. "Boa Noite" com um sotaque muito exótico foram as últimas palavras escutadas da voz de Bonnet.
O Bloco 4 estava finalizado e seguia-se curta pausa para jantar de modo a poder regressar para o Bloco 5 por volta das 21h30, aqui já no Grande Auditório do Rivoli. Salientar por último não ter tido tempo de poder escutar o Bloco 3, anterior a este, onde o trio "How Noisy Are The Rooms?" oriundo do centro da Europa ao que parece, depois de conversas com amigos que tiveram o oportunidade de assistir, tinha deixado o público em alvoroço.
BLOCO 5
José Soares "SOMA"
Confesso que este era o concerto que gerava em mim mais expetativas ao longo da tarde/noite deste 2º dia de programação do festival. Isto devia-se essencialmente a dois fatores: o primeiro devido ao álbum a ser aqui apresentado, "SOMA" - lançado pelo Carimbo Porta-Jazz em Julho do ano passado, um statement do autor e sem dúvida um dos registos mais fascinates de 2024 que revela uma maturidade criativa assinalável do ainda jovem compositor; o segundo vai de encontro à propria voz/marca de água de José Soares (JS) como instrumentista em pleno domínio do seu saxofone e das suas formas de comunicação/expressão. Para isso basta atentar ao seu trabalho no mais recente lançamento/projeto do contrabaixista Carlos Bica "11:11" (igualmente um dos registos mais marcantes do ano passado lançado via Clean Feed) cravando nele uma estética singular através da interpretação do seu saxofone alto, tomando papel de destaque em temas como "A Place You Will Never See" ou "A Noite", original do icónico e carismático José Mário Branco.
É essencial referir que este projeto "SOMA" resulta de uma residência artística realizada em 2023 em pleno Festival Guimarães Jazz, a 10ª colaboração/parceria entre a Porta-Jazz e o Guimarães Jazz (A Oficina • Guimarães), dando forma a um espetáculo gravado ao vivo e editado pelo Carimbo Porta-Jazz e que iria ser agora apresentado à plateia portuense.
O concerto iniciou com solo de JS no seu alto possuidor de uma filosofia sonora bem profunda e vincada, com destaque para as imagens em pano de fundo que iam sendo manipuladas em tempo real pela Artista Visual Varvara Tazelaar (VT), com um conceito inspirado em nomes como Gonçalo M. Tavares, Robert Musil, Gastón Bachelard, Clarice Lispector e Maria Gabriela Llansol. O pianista José Diogo Martins (JDM) foi entrando de mansinho através de uma manta sonora quase estelar - música complexa e de alto gabarito. Ecos de Charles Lloyd nos murmúrios soprados/cantados por J. Soares e a secção rítmica vai aparecendo lentamente numa galáxia aparentemente ainda por codificar: contrabaixo munido de arco de Omer Govreen (OG) e as primeiras escovas deslizadas por João Lopes Pereira (JLP). JS sai momentaneamente do lugar central e destacado do palco para que um solo de OG ganha protagonismo ao mesmo tempo que a vídeo-projeção de VT vai iluminado mais o Grande Auditório do Rivoli numa toada plena de psicadelismo potenciada pelas excursões rítmicas/tímbricas patente no diálogo entre OG e JLP. O sintetizador de JDM abre as hostes da eletrónica caminhando para um abismo sonoro onde no vídeo um olho quiçá humano parece representar um buraco negro. JS regressa ao sopro contínuo e o piano volta a deslindar a inquietação e uma certa aura com a secção rítmica a alinhar nesse confronto, sendo que a certa altura alguns laivos harmónicos fazem-me lembrar certos ambientes mais misteriosos e contemporâneos criados por António Pinho Vargas (mais particularmente no tema "Obscura, Nebulosa" do saudoso álbum de 1987 "As Folhas Novas Mudam De Cor") e dando por finalizado o desafiante tema "world : cloud". No momento seguinte espaço para o baterista JLP desenvolver um solo a rufar e uma toada rítmica em complemento direto com o vídeo apresentando "in motion" por VT, que vai ficando cada vez mais instável abrindo caminho para que os restantes músicos se fossem envolvendo de forma livre e exploratória. JS é o último a integrar com esta forma humana baralhada, dispersa e cada vez mais ruidosa, desaguando a mesma num planeta vermelho mais esclarecido, melódico e compassado, atingindo o seu auge em 2 super agudos consecutivos saídos do saxofone alto. As frequências sonoras estabilizavam numa palete visual que evocava um sismógrafo, numa experiência visual e sonora psico-sensorial, seguido de um sublime e caricato diálogo entre piano vs bateria num final onde voltou a pontuar o sax. de JS.
Apresentações finais e último tema deste concerto altamente recomendado, onde a eletrónica de JDM volta a renascer e o enredo sonoro vai ganhando cada vez mais camadas, bem estratificadas pelas escovas de JLP ao mesmo tempo que surge no vídeo um planisfério multidimensional composto por formas e linhas retas. O sax. era ora "uma porta a ranger", ora "uma gaivota desnorteada" em perpétuo movimento. O concerto caminhava para o final e outro nome me vinha a mente, figura central da estética vanguardista portuguesa que fez a ponte entre o século passado e o presente - Jorge Lima Barreto, músico, musicólogo e improvisador nato nascido na bela localidade de Vinhais em Trás-os-Montes. Último diálogo a 4 para um último solo de JS, lírico, livre e esclarecido q.b., rematando de forma apoteótica. Final em ponto de luz minimal num concerto onde a "soma" foi o conjunto de todas as partes, isto é músicos, artista visual, formas musicais e respetiva estética apresentada, numa tríade multidisciplinar entre experimentalismo, noise e contemporaneidade.
Bravo!
Fragoso Quinteto "CANTA DERROCADA"
A noite caminhava a passos largos, quando um pouco antes das 23h, João Fragoso (JF) e o seu Quinteto "Canta Derrocada" entrava em cena de rompante para o último concerto da noite no GA do Teatro Municipal do Porto (Rivoli), com intuito de apresentar último disco da formação com o mesmo nome da mesma e lançado em Outubro do ano passado via Carimbo Porta-Jazz. Curioso igualmente para re-ouvir o grande improvisador no sax. tenor Albert Cirera (AC) presença regular nos agrupamentos de música improvisada aquando da minha estada em Lisboa nos anos pré-covid.
Entrada fúnebre com ambiências "à la Ornette Coleman" (olá "Lonely Woman") mais atmosféricas saídas dos fx da guitarra elétrica de João Carreiro (JC) e o contrabaixo de JF que lembra a fase mais free de outro ícone do free - Charlie Haden - ao mesmo tempo que a bateria de Miguel Rodrigues (MR - que tem um lançamento super recente de nome "Antídoto" via Carimbo Porta-Jazz) vai amplificando os espaços entre os sopros em uníssono quebrado por um silêncio quase total, prenúncio para um inspirado solo de trompete de bolso, a cargo de João Almeida (JA), que nos guiou para um labirinto étnico quiçá "balcanizado" ou até mesmo arabesco, num monólogo bem intenso. Regresso do quinteto e o tema a ganhar um formato mais linear com a distribuição de papéis bem delineados: com destaque para um interessante cortejo entre trompete e guitarra elétrica e regresso final dos restantes músicos. O segundo momento é apresentado pelos sopros em consonância ruidosa, pratos de choque abertos e cordas de cortar a respiração...devaneios vários, cacofonias e apologia ao ruído. Corrosivo solo de AB em sax. tenor, no seu jeito visceral e "desalmado"...momento de improvisação total, seguindo de um pianíssimo dos sopros de modo a que música debitada possa vir à tona a água respirar.
Momento de pausa para apresentação dos músicos por parte de JF seguida de uma justa e tocante homenagem à Associação Porta-Jazz, músicos que dela fazem parte e à própria cidade do Porto, que recebeu o músico oriundo de Coimbra de braços abertos. O tema seguinte abriu com acordes inspirados de JC, abrindo caminho para um "caos organizado", explorações avulsas e um solo de AC, num momento inicial a solo. Puro lirismo, aqui e ali pontuado por alguns feedback's e finalizado pelo restante quinteto num momento de puro swing uptempo da velha escola americana. Belo ride de MR e solo intenso e revoltoso de JA, onde haveria igualmente tempo para um esplanar percutivo e tímbrico do baterista num jogo crescente e muito bem elaborado, dando via verde para a despedida dos restantes elementos do quinteto numa salomónica redenção. O concerto atingiu a hora de duração e os últimos momentos seriam numa espécie de fade-out, plenos de bom gosto, sensibilidade e exploração e sintetizando assim na perfeição mais um belo e intenso concerto no cardápio deste 2º dia de Festival.
Seguiu-se no TMP Café um animado Dj Set de Rui Miguel Abreu (Rimas e Batidas), onde para além de poder disfrutar de um jazz mais dançante, tive a oportunidade de rever e por a conversa em dia com músicos e amigos de longa data. Infelizmente o andar da hora já era longo e não pude assistir à Jam Session de encerramento da noite.
Parabéns à Porta-Jazz e venham mais 15 anos, no mínimo)!
👏🎶🎷
Francisco M. Sousa
📸-Jazz